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Beber da fonte do bem-viver e do bem-querer

Beber da fonte do bem-viver e do bem-querer

 Nesse terceiro domingo da Quaresma, no ano A, o lecionário nos faz retomar a leitura do encontro de Jesus com a mulher samaritana (João 4, 5- 42). É uma narrativa simbólica. O pano de fundo é a relação da comunidade cristã no final do século I com uma comunidade samaritana. Os judeus consideravam os samaritanos como hereges e impuros. O evangelho conta que Jesus, ao saber que os fariseus e religiosos diziam que ele estava batizando, decidiu deixar a Judeia. E na viagem para a Galileia, o mundo da periferia e dos mais pobres, ele tinha de passar pela Samaria (devia passar). Era como se hoje dissesse: para fazer uma verdadeira inserção no mundo dos pobres, é preciso entrar na relação com outras culturas e outras religiões. Ao entrar na relação com a samaritana, Jesus rompe com a cultura fechada dos judeus do seu tempo. Os discípulos estranham ao encontrar Jesus conversando com uma mulher e pior ainda, samaritana. Jesus rompe as barreiras do preconceito. Aproxima-se de uma mulher samaritana e não como mestre e sim como alguém que precisa dela. Coloca-se como necessitado e pede água.

Na minha vida, uma das descobertas mais profundas que fiz foi quando descobri que antes mesmo da gente procurar Deus, é o próprio Deus que procura e vem ao encontro da gente. Jesus revela esse jeito de ser divino. Na minha relação com Deus, sei que o importante é me impregnar do amor dele (amor que ele tem pelo mundo) e a forma mais correta de viver a intimidade com ele é fazer com que o projeto de paz, justiça e libertação que ele inspira se realize no mundo. A sede de justiça e de solidariedade que se espalha pelo mundo é dada por Deus e mantida por ele. O projeto de vida que temos e de uma sociedade justa é Deus que suscita, mas corresponde a uma necessidade nossa. Como precisamos de água boa e limpa para viver, precisamos acessar essa fonte de amor para sermos humanos e felizes.  

Jesus é a água viva que jorra ao nosso encontro como fonte de vida eterna que começa no já e no agora. Assim como Deus, pelas mãos de Moisés fez jorrar água para matar a sede do antigo povo no deserto, Jesus vem ao encontro da Samaritana e de cada um de nós como a nos dizer: conheço seu coração e suas necessidades e estou aqui para caminhar com você, para saciá-lo e para torná-lo meu discípulo.

As traduções de nossas Bíblias dizem que Jesus sentou-se na beira de um poço. Mas, o termo grego pegé é nascente, fonte. Na Bíblia, se a gente olha a história dos patriarcas, Isaac, Jacó, Moisés, foi sempre na beira de poços e de fontes que os patriarcas encontravam as moças com as quais namoravam e casavam. O poço é o lugar de se fazer alianças. É ali que Jesus encontra a samaritana. É no poço de nossos desejos e nossas sedes que Jesus nos encontra. Mas, será que temos claro qual é nossa sede mais profunda e onde está o poço de onde tiramos a água para renovar nossa vida?

A conversa de Jesus fala de várias sedes. A samaritana vem buscar água no poço. Jesus fala de uma água que quem bebe nunca mais precisa voltar ao poço. Isso faz a mulher perguntar sobre o Messias e as questões sociais e religiosas entre judeus e samaritanos. Jesus responde: Sou eu que estou falando com você. Essa união entre a sede mais íntima que temos no coração e a expectativa social e política da libertação (a figura do Messias responde a isso), é sempre um desafio para nós e para as Igrejas. Até hoje, temos uma divisão nas Igrejas: as pessoas que cultivam uma espiritualidade mais interior não ligam muito para o social e as pessoas que se dedicam mais ao social, muitas vezes, não sabem muito como ligar essa sede de justiça e libertação com a sede afetiva do coração que só se sacia em Deus.

Nos anos 80, Gustavo Gutierrez escreveu o livro “Beber do próprio poço”. Baseado em um versículo do livro dos Provérbios, Gustavo propõe um modo de viver a espiritualidade a partir da realidade de nossas vidas, tanto no plano afetivo, como no nível social e político. Precisamos descolonizar a fé e a espiritualidade, como, atualmente, a juventude fala em descolonizar o pensamento, o amor e a própria vida. 

A conversa de Jesus com a samaritana é muito subversiva porque ali Jesus acaba com a religião do templo. Diz a ela que chegou a hora em que não se deve mais adorar a Deus nos templos e de forma cultual e formal. Deus é espírito e verdade e seus adoradores devem adorá-lo em espírito e verdade. Em sua tradução do evangelho, Jean-Yves Leloup mostra que na cultura de Jesus, o espírito é sopro, é respiração vital e a verdade é o amor solidário. Então, a verdadeira adoração de Deus é retomar o mais profundo sopro de vida. É o que hoje os índios chamam o bem-viver. A verdade não é apenas um conceito intelectual e sim a práxis da justiça social libertadora. Quem fica em uma espiritualidade presa ao templo e restrita ao cultual não descobriu ainda esse apelo de Jesus no evangelho. A Campanha da Fraternidade desse ano nos remete ao mais belo de nós mesmos: somos de Deus, a Ele pertencemos e Ele não nos abandona jamais na caminhada de libertação nossa e do nosso povo. Dom Tonino Bello, um bispo italiano que dedicou sua vida à paz e à justiça publicou a seguinte oração: 

“Espírito de Deus, sopro de amor que Jesus insufla em nós, 

Faz de cada um/uma de nós e de tua Igreja 

sarça ardente de amor pelos últimos e sofredores do mundo. 

Dá-nos ternura e coragem, lágrimas e sorrisos,  

Torna-nos uns para os outros a praia repousante

Para quem está só, triste e pobre.

Como a mulher samaritana, também temos amantes,

Mas Jesus nos conduz à água que sacia todas as nossas sedes

Ali podemos então afirmar: Ele me disse tudo o que eu vivo”. 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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