Beber da fonte do bem-viver e do bem-querer
Neste 3º Domingo da Quaresma, desde os tempos mais antigos, as Igrejas costumam ler e ouvir o evangelho do encontro de Jesus com a mulher samaritana na beira de um poço em Sicar, ou Siquém, na Samaria (João 4, 5- 42). Nas regiões semi-áridas, como no sertão do nordeste brasileiro, os poços são essenciais. Assim como as cisternas e a captação de água da chuva podem transformar a vida na região semiárida, na cultura bíblica, os poços representam o centro da vida, o local onde as pessoas se encontram e onde se fazem as alianças de vida.
Alguém já afirmou que todo deserto sempre esconde ao menos um poço e a vida humana consiste em caminhar na direção do poço, para que as águas da Vida renovem em nós a energia do viver e do amar. No deserto do mundo, somos sempre atraídos por algum poço. Há poços que são miragens e quando chegamos neles, vemos que estão secos ou que as suas águas não são potáveis e há poços de águas límpidas e transparentes que nos fazem gostar de ter sede só para saborear aquelas águas maravilhosas.
Provavelmente, o evangelho do encontro de Jesus com a mulher samaritana é uma narrativa simbólica. O pano de fundo é a relação da comunidade cristã no final do século I, descrita no quarto evangelho com uma comunidade de cultura e religião samaritana. Os judeus consideravam os/as samaritanos/as como hereges e cheios de impurezas. Ao menos em parte, seria como, em nossos dias, muitos cristãos, católicos, evangélicos e pentecostais veem os irmãos de cultos e tradições afrodescendentes e também de espiritualidades indígenas.
Apesar de que o encontro de Jesus com a samaritana é um relato simbólico, no qual Jesus representa a comunidade joanina e a samaritana simboliza um grupo da religião samaritana, malvista na época, é claro que o evangelho parte de recordações que têm base na história. De fato, historicamente, os judeus evitavam passar no território da Samaria. Além do preconceito e da rejeição mútua que vinha de séculos, em peregrinação ao templo, qualquer judeu tinha de evitar a Samaria, para não ser contaminado pelo contato com algum dos templos pagãos que os samaritanos construíram em seu território. Na volta da peregrinação já não teriam este problema da purificação. Por isso, para tomar o caminho mais curto, alguns passavam pela Samaria. Conforme o relato de João 4, parece ser o caso de Jesus que volta da Judeia para a Galileia, passando pela Samaria. O evangelho chega a dizer que Jesus devia passar por ali. Assim como a comunidade cristã deve ir aos excluídos, aos hereges, aos malvistos. Era como se hoje dissesse: para fazer uma verdadeira inserção no mundo dos pobres, é preciso entrar na relação com outras culturas e outras religiões. Ao entrar na relação com a samaritana, Jesus rompe com a cultura fechada dos judeus do seu tempo.
O texto começa por afirmar que era meio dia. Isso indica que aquela mulher era muito marginalizada. Qualquer pessoa com pouco mais de direito iria ao poço pela manhã ou à tarde, em horário mais adequado para se buscar água. Naquele clima semiárido, só iria ao poço buscar água ao meio dia quem não tinha direito de ir em outro horário. O evangelho diz que o próprio Jesus está cansado e se senta à beira do poço.
Santo Agostinho diz que Jesus revela o cansaço do próprio Deus no seu cuidado de buscar a humanidade. Hoje, é bom saber que é sempre meio dia - dia claro e luminoso - quando o Cristo atravessa a fronteira e vai à outra cultura. Jesus rompe as barreiras do preconceito ao se aproximar de uma mulher samaritana e faz isso, não como mestre e sim como alguém que precisa dela. Coloca-se como necessitado e lhe pede água.
Na Bíblia, o poço é o lugar de se fazer alianças. É ali que Jesus encontra a samaritana. É no poço de nossos desejos e nossas sedes que Jesus nos encontra. Mas, será que temos claro qual é nossa sede mais profunda e onde está o poço de onde tiramos a água para renovar nossa vida?
(Valeria a pena parar aqui a leitura e você tentar responder para si mesmo/si mesma essa pergunta)
Esse encontro de Jesus com a mulher samaritana nos fala de várias sedes. A samaritana vem buscar água no poço. Jesus fala de uma água que quem bebe nunca mais precisará voltar ao poço. Isso faz a mulher perguntar sobre o Messias e as questões sociais e religiosas entre judeus e samaritanos. Jesus responde: Sou eu que estou falando com você.
No Candomblé de tradição Ketu, uma das grandes festas anuais é a das Águas de Oxalá. À noite, todos os membros da casa se purificam com um bori e se preparam para carregar as águas. Antes do nascer do sol, serão acordados/as pela Ialorixá. Vestidos de branco, saem em silêncio do terreiro, em procissão, carregando potes e moringas, tendo à frente a Ialorixá tocando o seu Ajá. É como se fosse um rito de pedido de perdão pelas injustiças sofridas por Oxalá em sua visita ao reino do seu filho Xangô. Neste ritual, é a água que purifica e que simboliza o perdão. É a água que faz o Orixá Oxalá retomar o seu trono de rei, pai de Xangô.
No Cristianismo é a água que nos faz filhos e filhas de Deus. E ela tem esse caráter de água que desperta em nós mais sede. Sede da intimidade divina e sede de justiça e Paz. Essa união entre a sede mais íntima que temos no coração e a expectativa social e política da libertação (a figura do Messias responde a isso), é sempre um desafio para nós e para as Igrejas. Até hoje, temos uma divisão nas Igrejas: as pessoas que cultivam uma espiritualidade mais interior não ligam muito para o social e as pessoas que se dedicam mais ao social, muitas vezes, não sabem muito como ligar essa sede de justiça e libertação com a sede afetiva do coração que só se sacia em Deus.
Nos anos 80, Gustavo Gutierrez escreveu o livro “Beber do próprio poço”. Baseado em um versículo do livro dos Provérbios, Gustavo propõe um modo de viver a espiritualidade a partir da realidade de nossas vidas, tanto no plano afetivo, como no nível social e político. Precisamos descolonizar a fé e a espiritualidade, como, atualmente, a juventude fala em descolonizar o pensamento, o amor e a própria vida.
Cada página do evangelho sempre possibilita várias leituras que não se excluem. Se é verdade que a mulher samaritana simboliza a comunidade samaritana em diálogo com o evangelho, os cinco maridos que Jesus diz que a mulher teve pode significar os cinco cultos estrangeiros que os samaritanos tinham na Samaria. O risco dessa leitura é transportar para hoje de forma fundamentalista essa luta contra outros cultos. No caso da comunidade cristã no século I, o culto estrangeiro significava a submissão à cultura imperial neles contida.
A conversa de Jesus com a samaritana é muito subversiva porque ali, claramente, Jesus revela a superação da religião do templo. Ele diz à mulher que chegou a hora em que não se deve mais adorar a Deus nos templos e de forma cultual e formal. Deus é espírito e verdade e seus adoradores devem adorá-lo em espírito e verdade. Em sua tradução do evangelho, Jean-Yves Leloup mostra que na cultura de Jesus, o espírito é sopro, é respiração vital e a verdade é o amor solidário. Então, a verdadeira adoração de Deus é retomar o mais profundo sopro de vida. É o que hoje os índios chamam o bem-viver. A verdade não é apenas conceito intelectual e sim práxis da justiça social libertadora. Quem fica em uma espiritualidade presa ao templo e ao cultual não descobriu ainda esse apelo de Jesus no evangelho.
Dom Tonino Bello, um bispo italiano que dedicou sua vida à paz e à justiça publicou a seguinte oração:
“Espírito de Deus, sopro de amor que Jesus insufla em nós, faz de cada um/uma de nós e de tua Igreja sarça ardente de amor pelos últimos e sofredores do mundo. Dá-nos ternura e coragem, lágrimas e sorrisos, Torna-nos uns para os outros a praia repousante para quem está só, triste e pobre. Como a mulher samaritana, também temos amantes, mas Jesus nos conduz à água que sacia todas as nossas sedes Ali podemos então afirmar: Ele me disse tudo o que eu vivo”.