Blog Aqui vamos conversar, refletir e de certa forma conviver.

Carta aberta sobre o Anúncio do Natal, contestado por católicos tradicionalistas

Recife, celebração do Natal, 2016

Caríssimos irmãos, 

Padre José Dias Goulart e Padre Nilo Luza,

Nesses dias, ao voltar de uma missão no norte da Itália, através de amigos, recebi referências de um site na internet que me revelavam a reação de um grupo de católicos tradicionalistas a um texto meu, publicado pela Editora Paulus no folheto "O Domingo" dessa festa de Natal. 

Em princípio, procuro responder a todas as pessoas e grupos que me questionam ou criticam, desde que possa perceber nelas uma mínima abertura ao diálogo e à busca da verdade. Aos que se refugiam em uma atitude dogmática e mostram não estar abertos a dialogar, não respondo para evitar mais polêmicas. Faria isso no caso dos ataques desse grupo, se não visse na internet que eles interpelaram a editora Paulus e que a editora respondeu. A resposta de vocês foi muito sábia e nem precisaria mais que eu me pronunciasse. No entanto, como mantenho com vocês um diálogo de cooperação e a editora pode ainda ser perguntada sobre o texto que provocou esses desencontros, resolvi lhes escrever para esclarecer do que se trata e quais as razões e fundamentos do que propus no "Anúncio do Natal", publicado no folheto do Natal de 2016 e que, antes, tinha sido objeto de uma gravação na Paulus, com letra minha e música de frei Telles Ramon, compositor ligado à Rede Celebra.   

1 - A natureza do texto e sua função litúrgica

O texto comumente chamado de "Calendas do Natal" era simplesmente o texto do Martirológio Romano para o dia 24 de dezembro. Era e ainda é lido nos mosteiros e conventos, na refeição da tarde do dia 24, como diariamente se lê o martirológio do dia seguinte. Esse do Natal é cantado e tem o caráter de anúncio do Natal. Por querer tornar esse texto mais acessível ao povo de Deus e não só aos religiosos, a partir do papa João Paulo II, iniciou-se o costume de ler esse texto no começo da Missa da Noite, na Basílica de São Pedro e isso se espalhou pelo mundo. O papa Bento XVI preferiu colocá-lo no final do "Ofício de Leituras" que serve como Vigília de Natal, imediatamente antes da Missa da noite (portanto, fora da própria liturgia). O texto acabou tendo a função de "anúncio do Natal", um pouco comparado com o que o Precônio Pascal (o Esxultet) é para a Vigília Pascal. Tanto é assim que o Diretório Litúrgico da CNBB o propõe (é uma proposta) para ser lido ou cantado no começo da missa da noite do Natal (Diretório de 2016, p. 40). 

O precônio pascal é uma peça litúrgica, reservada liturgicamente ao Diácono. Tem caráter de ação de graças e estilo de prefácio de missa.  Serve como louvor da noite clara como o dia, mãe de todas as vigílias da Igreja. Assim, o Esxultet introduz toda a festa pascal. Já esse "anúncio do Natal" tirado do Martirológio não faz parte do Missal Romano e não tem o mesmo peso, nem a mesma profundidade. 

Então, a primeira observação que podemos fazer é que não se trata de um texto litúrgico oficial e, por isso, tem uma natureza que se presta mais a adaptações e atualizações. 

De fato, tanto eu fiz aquela modificação, agora criticada por esse grupo tradicional, como mesmo os liturgistas de Roma fizeram, em décadas recentes, uma modificação no texto. Quando eu fiz essa modificação e propus essa versão que o folheto publicou, ainda nem tinha saído essa nova forma do Martirológio. A clássica começava dizendo: Cinco mil e oitocentos anos da criação do mundo, mil e oitocentos anos do chamado de Abraão...". Chegava a ser ridículo proclamar ainda hoje em dia, que, quando Jesus nasceu, o mundo tinha apenas cinco mil e alguns anos de existência. Por isso, mudaram. Ninguém mais recita atualmente o texto antigo. Mas, mesmo o texto renovado ainda é muito limitado. Começa dizendo: "Transcorridos muitos séculos desde que Deus criou o mundo e fez o homem à sua imagem...". Ora, sabemos que são milhões e milhões de anos e não séculos nem milênios... Além disso, desde a Laudatum sii, valorizamos o ser humano como imagem de Deus, mas expressamos que todo o universo recebe algo do esplendor divino (Hb 1, 2). Além disso, o texto é extremamente romano (as referências são as da Bíblia e fora disso só se refere à fundação de Roma e "às Olimpíadas 140a de Atenas....". 

A preocupação do nosso texto foi seguir o Concílio Vaticano II que propôs situar o evento cristão dentro de uma dimensão mais universal da salvação. A Constituição para a Liturgia do Vaticano II propõe que se adapte os textos litúrgicos às diferentes culturas (S.C n. 39 e 40). Se, de acordo com o Concílio, podemos e devemos adaptar os textos litúrgicos, por que não poderíamos um que nem é propriamente litúrgico? 

A intenção dessa atualização latino-americana do anúncio do Natal foi ampliar o olhar, introduzir o Natal a partir de uma perspectiva mais universal. Contém uma alusão a Confúcio e Buda e aos caminhos espirituais dos povos ameríndios para situar o Natal na história do mundo. Esse modo de falar das outras religiões obedece simplesmente à teologia do Concílio Vaticano II. Nem é a perspectiva de uma teologia pluralista atual, bem mais ampla. O texto não chega a tanto. Apenas retoma o que há 50 anos dizia o Concílio sobre as outras religiões: a Igreja as valoriza e vê nelas a ação divina (Nostra Aetate 4). As religiões pagãs contêm "sementes do Verbo Divino" (Decreto Ad Gentes, n. 11). Ora, se todos os bispos reunidos no Concílio retomam a palavra de Santo Agostinho de que todas as religiões contêm "sementes do Verbo", porque no momento do Natal, ao anunciar o nascimento desse mesmo Verbo, não podemos fazer referência a essas sementes que conduzem ao Verbo? 

Em 1986, na encíclica Dominum et Vivificantem, o papa João Paulo II escreveu: "Não é possível limitar (a ação do Espírito Santo) aos dois mil anos decorridos desde o nascimento de Cristo. É necessário retroceder no tempo, abarcar toda a ação do Espírito Santo mesmo antes de Cristo, desde o princípio, em todo o mundo e, especialmente, na economia da Antiga Aliança. (...) Também devemos alargar as nossas vistas para mais longe, «para o largo», conscientes de que «o vento sopra onde quer», segundo a imagem usada por Jesus no colóquio com Nicodemos. O Concílio Vaticano II, centrando a atenção sobretudo no tema da Igreja, recorda-nos a ação do Espírito Santo mesmo «fora» do corpo visível da Igreja. Ele fala precisamente de «todos os homens de boa vontade, no coração dos quais invisivelmente opera a graça. Na verdade, se Cristo morreu por todos e a vocação última do homem é realmente uma só, a saber, a divina, devemos manter que o Espírito Santo oferece a todos, de um modo que só Deus conhece, a possibilidade de serem associados ao mistério pascal» (Dominum et Vivificantem, n. 53). 

Se pudéssemos dialogar com esses irmãos, diríamos que foi apenas isso que fizemos.  

Nesse grupo que protestou contra essa adaptação até cuidadosamente tradicional do "Anúncio do Natal", há bispos e teólogos que conhecem o Concílio Vaticano II. Sabem dos textos de papas mesmo João Paulo II e Bento XVI que dão fundamento ao meu texto. Isso revela que, ao levantarem suas armas contra mim e contra a editora, de fato, estão atacando a proposta de abertura inter-religiosa do Concílio Vaticano II e de organismos oficiais do Vaticano (Basta ver o documento "Diálogo e Anúncio, de 1994, da Congregação para a Missão e do Pontifício Secretariado para o Diálogo Inter-religioso). O problema é mais eclesial. Revela como, para muitos grupos, a obediência ao papa só funciona quando é do lado deles. A proposta do papa Francisco para uma Igreja em saída ainda não encontra ressonância na própria Igreja. Infelizmente, ao que parece, para um grupo como esse, protestar contra o nosso "Anúncio do Natal" foi apenas um pretexto para voltar a uma espécie de Cruzada que, em nome de Deus, continua testemunhar um Cristianismo guerreiro e pouco aberto a um Deus amor do qual queremos ser testemunhas. 

Para vocês, obrigado pela confiança fraterna e fiquemos em comunhão. Feliz Natal. Um abraço do irmão Marcelo Barros

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

Informações