A
Páscoa que Jesus destruiu
No edifício onde moro, em dezembro, na portaria, coloca-se uma caixinha para os moradores contribuírem com "o Natal" dos funcionários. Esse mesmo costume existe em lojas e restaurantes. É comum as pessoas esperarem um dinheiro extra para o seu Natal. É claro que está subentendido que o dinheiro é para ajudar na festa familiar e em algum presente que se queira comprar para a família. No entanto, o nome do dinheiro se tornou ele mesmo o Natal. Uma vez, vi uma senhora rica dar um cheque a Dom Helder (que o devolveu). Ela dizia: Esse é o Natal dos seus pobres. Algo semelhante na época do templo de Jerusalém ocorria com as festas religiosas, principalmente a Páscoa. Uma multidão de pessoas viviam economicamente da Páscoa, vendedores de cordeiros e cabritos, sacerdotes que os sacrificavam, cambistas que tinham de trocar as moedas dos fieis que vinham do estrangeiro e não podiam entrar no templo com nenhuma moeda que tivesse imagem de alguém (todas tinham, menos o shekel de Israel). Por isso, no átrio do templo, os cambistas trocavam moedas. O Evangelho de João conta que Jesus transformou água em vinho em uma festa de casamento em Caná na Galileia e imediatamente vai a Jerusalém para a Páscoa e provoca um tumulto no templo. Eram dias nos quais a população da cidade se multiplicava por cinco ou mais vezes. E o comércio sagrado que Jesus encontrou no templo era absolutamente normal em todos os templos. Até hoje é em Meca, em Jerusalém, em Roma, Santiago de Compostela, Guadalupe no México, ou no Brasil, em Bom Jesus da Lapa, Juazeiro do Norte, Aparecida, ou mesmo aqui no Recife no Morro da Conceição em dezembro. E o evangelho diz que Jesus derrubou as mesas dos cambistas, espalhou o dinheiro pelo chão e expulsou todos do templo, cambistas, vendedores de animais, todos. O termo que o evangelho usa é exebalen, de onde vem no latim o termo exorcismo. Jogou para fora.... arrancou... Jesus exorcizou o templo.... exorcizou a religião baseada em sacrifícios...
Até hoje, padres e pastores que pregam
sobre esse evangelho ainda pensam que Jesus purificou
o templo. Ele estaria escandalizado porque o templo religioso tinha se
transformado em mercado e então limpou a religião do comércio impuro... Teria
retomado a função pura do templo como casa de Deus. A citação de Jeremias 7 que
Jesus teria dito para os vendedores de pombas (as pombas eram usadas para o
sacrifício dos pobres que não tinham dinheiro para comprar cordeiros)
"Tirem daqui tudo isso. "Não
façam da casa do meu Pai uma casa de comércio" (em grego emporium, mercado). E parece que os
próprios discípulos de Jesus compreenderam assim o gesto profético de Jesus,
tanto que o evangelho comenta (portanto, a própria comunidade joanina) que, ao
verem aquilo, os discípulos se lembraram da palavra do salmo 69: "O amor ciumento da tua casa me
consome". Claro que, se nesse contexto, eles lembraram dessa palavra
era porque consideravam o templo como a casa de Deus e Jesus teria agido por
uma espécie de ciúme do templo, tomado pelos comerciantes. No entanto, segundo
o próprio texto do evangelho, essa não era a postura profunda de Jesus. Não
tinha sido isso que Jesus queria significar. E parece que os sacerdotes
compreenderam isso, já que perguntaram: "Que sinal você dá de que tem autoridade para fazer isso?" Isso o que? Para agir assim? Assim como?
De fato, ao derrubar as mesas dos cambistas
e ao expulsar os vendedores com seus animais do templo, Jesus praticamente
acabou com aquela celebração pascal. De acordo com a lei de Moisés e com a
prática do templo, sem sacrifícios e sem cordeiros e sem tudo aquilo, não tinha
Páscoa. O evangelho chama de forma irônica A
Páscoa dos judeus , mas isso é meio injusto porque o livro do Êxodo chama
Páscoa do Senhor e ali, como no Levítico, estão determinados os sacrifícios e
rituais (Ex 12, 23; Lv 16). Então, o que Jesus fez foi impedir que eles
celebrassem a Páscoa.
É claro que os padres e pastores sempre
poderão ler o gesto de Jesus como um ato ecumênico contra a religião judaica. O
que está ultrapassado é o Judaísmo do templo. Mas, será isso mesmo? Ou Jesus ao
falar, como diz o evangelho, do templo do seu corpo ressuscitado, não estaria
abolindo toda e qualquer religião que continue a se centrar em cultos e
obrigações rituais?
Da nossa parte, seria fácil e superficial
pensar que a profecia de Jesus, ao exorcizar o templo, vai contra a religião
daquela época, mas nada tem a ver com a nossa. Pessoalmente, prefiro me sentir
questionado por Jesus, em toda a construção religiosa na qual me apoio. Prefiro
me perguntar se as missas que celebro e a Páscoa que estou preparando não seja
o que o evangelho chama de Páscoa dos judeus e seja verdadeiramente uma Páscoa
do Senhor.
Em toda religião, o foco central está no
sagrado. Para o evangelho, o centro de tudo está no humano. A preocupação
central de Jesus foi como dizia Dom Oscar Romero: Libertar os pobres. É claro
que a religião seria meio para se atingir essa meta de uma plena humanização ou
como diz acertadamente a carta: a divinização do ser humano. Mas, até que
ponto, uma religião centrada em suas normas e doutrinas, ajuda a isso ou, ao
contrário, dificulta e acaba por desviar as pessoas do caminho?
Sem nenhuma vontade de ser chato ou
agressivo, penso na nossa Igreja. Nessa semana passada, a Congregação para a
Doutrina da Fé, em Roma, publicou uma carta (Placuit Deus - em português, Agradou
a Deus), advertindo aos bispos católicos sobre alguns aspectos da salvação cristã. Li e reli a carta.
Estranhei esse título de salvação cristã porque
aprendi com o Concílio Vaticano II que a salvação é de Deus e só dele e está no
mundo. As Igrejas cristãs (não só a Igreja Católica) são sinais e devem ser
instrumentos dessa salvação que ocorre no mundo e não na Igreja. Ao ler o
conjunto do texto, fiquei com a triste impressão de que, mesmo em tempos do
papa Francisco, que eles dizem ter aprovado a carta, o objetivo da carta é
denunciar a tendência dos que pensam em se salvar sem dependerem da Igreja
Católica, única mediadora e intermediária da salvação que eles chamam de salvação cristã. Essa carta que usa o
nome de Jesus para garantir o monopólio da salvação pela Igreja está na linha
da Páscoa do Senhor ou do que o evangelho chama de Páscoa dos judeus?
Até hoje, ainda há muitos fiéis,
religiosos/as e até bispos e padres que dividem natural e sobrenatural. Separam
Deus e o mundo. E, em nome de Jesus, achando-se a si mesmos os mais piedosos e
santos, continuam construindo uma Igreja que, a cada dia, se olha no espelho e
se pergunta: "Espelho, espelho meu,
por acaso, haverá uma Igreja mais importante, mais bela, mais autocentrada e
fechada em si mesma do que eu?"
O Evangelho desse domingo nos chama a subir com Jesus a Jerusalém, a estar
junto dele na refutação profética (quantas vezes, fico sabendo que o meu nome é
rejeitado, não pelos meus defeitos e pecados (que são muitos), mas pelo fato de
não aceitar minimizar ou abrir mão das exigências proféticas e radicais do
Evangelho de Jesus? É claro que quando isso ocorre, devo me lembrar de que sou
pecador e devo ser humilde e aceitar a rejeição, por causa de meus defeitos e
pecados e não porque não aceito abrir mão do que Deus nos chama a viver como
profecia. O evangelho de hoje nos chama a nos olharmos a nós mesmos e aos
outros como tendas divinas (shekiná) de Deus no mundo e a reverenciar essa
presença e ação divina nos outros e em nós mesmos. Mas, como dizia Dietrich
Bonhoeffer: O Espírito está em mim para você e em você para mim. Está em mim,
mas para mim mesmo ele é fraco. É forte para você. Está em você, mas é fraco
para você e forte para mim. Assim, o encontramos uns nos outros e precisamos
uns dos outros para viver uma Páscoa sem fim...