Aquarius, parábola de um mundo
O filme brasileiro que, nos últimos tempos, mais está provocando discussões e debates é Aquarius de Kleber Mendonça Filho. Comumente, as pessoas dizem que o debate político é porque durante o festival de Cannes e aonde tem se apresentado, o filme acaba provocando manifestações contra o golpe de Estado que o Brasil sofreu. Comumente as sessões se encerram com gritos de "Fora Temer".
No entanto, penso que não é por essas manifestações externas ao filme que Aquarius é um filme com profundo significado social e político. Provavelmente, a maioria das pessoas que, no final das sessões, gritam contra o golpe, fazem isso por sensibilidade e porque sentem no ar que há qualquer coisa que liga o filme e a realidade atual que o Brasil vive. Também, muitos o fazem por simples solidariedade à equipe de artistas que, ao se exporem, colocaram o filme no limbo das preferências das atuais autoridades brasileiras para festivais e prêmios aos quais o filme poderia concorrer em nome do Brasil.
O que, certamente, nem todo mundo que protesta percebeu é que o filme conta mais do que uma história particular. É claro que, quem conheceu e amou o Recife dos anos 80 (nem falo dos anos 50 ou 60), sente imediatamente o impacto de rever no filme em fotografias fieis e denunciadoras essa bela cidade antes e depois da avalanche imobiliária que sofreu. Basta algumas imagens e o espectador se dá conta da guerra travada pelas grandes construtoras aliadas às autoridades legislativas e executivas para acabar com o rosto próprio e a memória afetiva dessa cidade que um dia foi aprazível e se orgulhava de ser chamada de "Veneza Brasileira". E aí nas cenas que retratam móveis de uma época, discos de outros tempos e até as músicas que embalaram nosso passado, o filme revela que é importante lutar não pela nostalgia de um tempo que passou, mas pelo direito de ter história e manter uma identidade própria que não se reduz ao mercado imobiliário.
Mesmo as duas ou três cenas de sexo quase ao vivo e a cru que a máquina revela não são gratuitas. São também parábolas de um país que virou uma suruba para uma elite desocupada e sempre invasora dos espaços públicos. Até os detalhes do homem que perde o desejo ao constatar que a mulher não tinha um seio ou do jovem que é contratado para cumprir papel de macho não deixam de ter significado social e político. Por mais agressivo que pareça, ninguém se engane. O diretor não quis apenas atiçar a curiosidade sexual de ninguém. Quis mostrar que nesse quadro em que vivemos, o país está literalmente "devorado" como uma prática sexual de tipo irresponsável e desligada da relação humana.
A Clara, magnificamente interpretada e vivida por Sonia Braga, no auge de sua maturidade humana e artística, não é apenas uma pessoa de caráter que a imobiliária Bonfim não consegue dobrar com suas propostas generosas. É o símbolo dos movimentos sociais e das comunidades de base que lutam por um Brasil libertado da idolatria do mercado e mais justo com todos os seus filhos e filhas.
O poder quase absoluto da construtora se revela no filme como parábola de como o golpe parlamentar que sangrou o Brasil de agora não é apenas a luta da ambição dos que perderam e não conseguem ganhar no voto e que fizeram todas as manobras possíveis para serem auxiliares de segunda categoria do governo golpista que trai até a própria mãe para garantir sua porção na partilha dos despojos que resultam do assalto ao poder.
Certamente, Clara ou o Brasil não tem como vencer a luta desigual, mas pode sim mostrar ao mundo que o Brasil é um imenso edifício Aquarius, ameaçado pelo poder destruidor dos cupins que destroem qualquer estrutura da qual se apossam.