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Como se tornar discípulo ou discípula de Jesus

 COMO SE TORNAR DISCÍPULO/A VERDADEIRO/A DE JESUS? 

                    PARA SE CAMINHAR É PRECISO VER.

Por Marcelo Barros[1] e Gilvander Moreira[2]

Neste XXX Domingo Comum (do Ano B), domingo, dia 27 de outubro de 2024, em mês missionário, o evangelho lido nas comunidades é Marcos 10, 46 a 52. Não podemos interpretar esta e nenhuma outra narrativa dos quatro evangelhos da Bíblia como se fossem crônicas jornalísticas escritas no calor dos fatos. Não devemos recair em interpretação fundamentalista, literalista. O evangelho de Marcos, escrito na década de 70 do século I, é teologia e não história fria. Com os olhos e a experiência de quem experimenta que Jesus Cristo está vivo, ressuscitado e presente na caminhada das comunidades, o evangelho quer passar uma mensagem de superação da cegueira e compromisso com a caminhada no movimento popular religioso de Jesus Cristo. Precisamos observar o processo de libertação pelo qual passa o cego/cegado, os vários passos entrelaçados que o leva da cegueira ao seguimento de Jesus Cristo. 

É a segunda vez que o evangelho de Marcos conta que Jesus cura um cego/cegado. Ele realiza a primeira cura na saída da Galileia em Betsaida (Cf. Mc 8,22-26). A cura narrada no evangelho de hoje se dá na saída de Jericó, última parada na subida do movimento de Jesus para Jerusalém, onde Jesus será condenado à morte pelo podres poderes, mas ressuscitará. Na Bíblia, Jericó tinha sido o ponto a partir do qual o povo hebreu ocupou a terra prometida, Palestina (Cf. Josué 6). Antes, em Josué 2, na periferia de Jericó, Raab, mulher dona de pensão e periférica, acolhe os espiões enviados por Josué para planejar a ocupação da terra e os protege. Efetiva, assim, a aliança dos explorados da cidade com os escravizados que chegaram fugidos do Egito dos faraós para conquistar a terra em que “corria leite e mel”. Então, ao recordar isso, o evangelho de Marcos parece apontar Jericó como o local da entrada dos marginalizados no caminho de libertação que passa pela páscoa de Jesus Cristo. 

Marcos conta a cena quase como um teatro com muitos personagens: Jesus, os discípulos e a multidão (ochlos, em grego), ou seja, trata-se, provavelmente, da massa de peregrinos/as que iam para Jerusalém para a festa das festas, a Páscoa. 

Conforme o relato, quando Jesus e seus discípulos e discípulas estão saindo de Jericó, aparece à margem da estrada um cego, que é mendigo. Um marginalizado. Marcos, que até então só tinha dado nome a um personagem, Jairo, agora dá nome ao cego: Bartimeu, filho de Timeu, que talvez signifique: o impuro. Segundo a lei da pureza, quem se aproximasse de uma pessoa impura se tornava impuro também. Bartimeu é cego como os discípulos que não conseguem ver com olhos novos o projeto divino que Jesus quer cumprir. Só conseguem compreender o messianismo como projeto de realeza e poder. 

O evangelho diz que, assim como os discípulos, Bartimeu também aclama duas vezes: “Jesus de Nazaré, filho de Davi” (Mc 10,47.48). Só que diferentemente dos discípulos que no evangelho anterior queriam poder, o cego e excluído grita duas vezes: “Tem misericórdia de mim” (Mc 10,47.48). Os discípulos e, talvez, também muita gente que caminhava com eles, fazem o que até hoje na sociedade é comum as pessoas fazerem com as pessoas marginalizadas, as que sobrevivem à margem da estrada da vida. Mandam que se calem. No Brasil e no mundo, muita gente que é empurrada para as periferias sociais e existenciais é obrigada a sobreviver como se não tivesse boca, pois “se falar e denunciar injustiças, morre”, “se ouvir e falar, morre”, perde emprego, é forçada a votar em coronéis políticos para não ser punida após as eleições ou a suportar opressão de patrões por não verem alternativas de libertação. No entanto, indignado com os que tentavam abafar o grito do cego Bartimeu,  Jesus não aceita essa conduta dos seus discípulos e da multidão, manda chamar o homem que grita por socorro. “Pai, afasta de mim este Cale-se!”, protestam Chico Buarque e Milton Nascimento com a música Cálice diante da censura da ditadura militar-civil-empresarial. 

Alguém anima o cego ou cegado para empreender um processo de libertação e diz: “Coragem! Levanta-te! Jesus te chama” (Mc 10,49). Que palavra maravilhosa que cada um, cada uma de nós pode ouvir hoje: Coragem! Levanta-te! Jesus te chama. Aliás, em centenas de vezes na Bíblia quando um anjo se apresenta a uma pessoa lhe chamando para uma missão, quando a pessoa treme na base, o anjo sempre diz: Coragem! Não tenha medo! Uma programação televisiva, de rádio ou jornal que dissemina o medo no meio social estilhaça a coragem das pessoas, mete medo nas pessoas e empurra as pessoas para o isolamento. Isto corroí a fé das pessoas. Biblicamente falando, fé é sinônimo de coragem. 

Marcos faz questão de dizer que o cego joga de lado a capa de mendicante, se levanta e vai ao encontro de Jesus, desrespeitando com esta atitude a lei da pureza que proibia que ele, impuro, se aproximasse de alguém que era considerado puro. O apóstolo Pedro reconheceu que Jesus era o filho de Deus, o salvador, mas teve medo (Mc 8,27-33) e negou Jesus três vezes (Mc 14,66-72). Marcos mostra o cego tendo mais coragem que Pedro. O homem muito rico que procurou Jesus pedindo a vida eterna não tinha sido capaz de se desfazer de suas riquezas e reparti-las com os pobres. Marcos mostra o cego se tornando discípulo enquanto o rico preferiu ficar amarrado na sua riqueza. Feliz com a acolhida de Jesus, deixando a posição de mendicante, Bartimeu joga fora a única coisa que tem: a capa de mendicante. Jesus não foi assistencialista com o cegado lhe dando uma moeda, mas lhe pergunta: “O que você quer que eu faça por você?” (Mc 10,51). O cego não pediu esmola, mas clamou por um direito: “Mestre, faze que eu possa ver” (Mc 10,51). Feliz da vida ao perceber a fé do cego, Jesus celebrou o resgate da visão do cego: “Vai. Tua fé te salvou” (Mc 10,52). Observe o detalhe: fé do cego e não a fé em Jesus. E o cego se tornou um discípulo de Jesus e “o seguia no caminho” (Mc 10,52). Assim, Jesus nos ensina que para sermos humanos precisamos ouvir e atender aos clamores dos injustiçados e sofredores, entre os quais estão os cegos/cegados. 

Do cego e pobre Bartimeu, Jesus aceita o título messiânico que não tinha aceitado da parte de Pedro e dos discípulos. Só que no caminho, Bartimeu vai ter que ver de outra forma e com outros olhos como Jesus viverá essa missão de filho de Davi. Na entrada em Jerusalém que o evangelho conta logo depois, a multidão dos peregrinos pobres aclamará Jesus com o mesmo título de filho de Davi e este não recusará. Do meio dos pobres, Jesus acolhe o grito e responde à sua esperança. 

Em um de seus livros de histórias latino-americanas, o escritor Eduardo Galeano conta o caso do menino que vivia pedindo ao pai para que esse o levasse a conhecer o mar. Um dia, o pai o levou consigo e depois de terem andado um dia de viagem, subiram em uma colina e ali estava diante deles o mar. Diante daquele mundo de água e de um horizonte que ele nunca tinha visto, o menino sussurrou ao pai: “Pai, ensina-me a olhar.”

Este evangelho nos confirma que viver hoje o discipulado de Jesus pede de nós uma mudança de olhar e de prática. O Cristo do poder, do prestígio e ligado à religião cultual não é este Jesus que abriu os olhos de Bartimeu e abre os nossos para a caminhada pascal. É na caminhada da libertação a partir do povo empobrecido que participaremos da missão libertadora de Jesus.  

“Turma do caminho” foi o primeiro nome dos discípulos e discípulas de Jesus Cristo, “os que eram do Caminho” (At 9,2), antes de serem chamados de cristãos pelo povo de Antioquia (At 11,26), pela primeira vez. Em nossa realidade, “caminhada” é o nome que se dá à Igreja de base que se insere nos movimentos sociais e no caminho de construção de um novo mundo possível, sendo luz nas trevas, sal na terra e na comida e fermento na massa. 

Quem lê o evangelho de Marcos sabe as dificuldades que a própria comunidade dos/as discípulos/as de Jesus teve para compreender e assumir a proposta do Cristo. Alguns discípulos estavam muito presos às expectativas messiânicas da cultura judaica da época e outros, de cultura mais grega, também não compreendiam o caminho que faziam com Jesus: caminho para Jerusalém, mas na realidade de Jesus, caminho para a sua condenação à morte, ao fracasso aparente de sua missão, caminho para a doação de sua vida na cruz. 

Até o encontro com Jesus e seu movimento, Bartimeu era cego e mendigo. O encontro de Bartimeu com Jesus despertou um lindo processo de humanização que o transformou em discípulo verdadeiro de Jesus no caminho para a doação de vida enfrentando os poderosos em Jerusalém.

Em Santa Tereza, bairro histórico de Belo Horizonte, MG, a sede única da Associação filantrópica União Auxiliadora dos Cegos de Minas Gerais, que em mais de 70 anos de existência já acolheu mais de mil cegos e é lar hoje de muitos cegos, está com despejo decretado por um desembargador do Tribunal Regional Federal 6ª Região (TRF6). Uma autoridade perguntou ao atual presidente da União Auxiliadora dos Cegos de MG: “Caso aconteça mesmo o despejo, vocês cegos aceitam ir para um abrigo público da prefeitura ou para um asilo ou casa de acolhida?” O atual presidente da União Auxiliadora dos Cegos de MG, Renato Leonardo Ferreira, de cabeça erguida, respondeu de forma categórica: “Jamais aceitaremos ser retirados da nossa casa, que é o nosso lar. Pedimos ao Governo Federal e à Justiça Federal que abram processo de negociação que leve à exclusão do despejo, seja perdoando a dívida como o Governo Federal tem feito nas últimas décadas com muitos usineiros, latifundiários e empresários ou encontrando outra forma de se pagar a dívida, mas sem nos retirar do nosso lar. Se se perdoa dívida de tantos ricos falidos, por que não perdoar a dívida de uma entidade filantrópica como a União Auxiliadora dos Cegos de MG?

Enfim, no Brasil injusto, nem cegos/as estão livres de despejo. Mas como Bartimeu, as pessoas cegas/cegadas seguem lutando por direitos e seguindo Jesus. Estar com estas pessoas periferizadas na luta pelos seus direitos é o que o evangelho do discípulo Bartimeu nos pede. 

 

Cantemos com Zé Vicente: 

 

Bendita e louvada seja esta santa romaria

Bendito o povo que marcha,

bendito o povo que marcha,

tendo Cristo como guia.

 

Sou, sou teu, Senhor,

sou povo novo, retirante e lutador,

Deus dos peregrinos, dos pequeninos,

Jesus Cristo redentor.

 

No Egito, antigamente, no meio da

escravidão, Deus libertou o seu povo. 

Hoje ele passa de novo gritando a libertação.

 

Para a terra prometida o povo de Deus

Marchou. Moisés andava na frente. 

Hoje Moisés é a gente quando enfrenta o opressor.

 



[1] Padre e monge Beneditino, biblista da Libertação e assessor de Movimentos Sociais e de Diálogo Interreligioso. 

[2] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI e Ocupações Urbanas; autor de livros e artigos. E-mail: [email protected] – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       Canal no you tube: https://www.youtube.com/@freigilvander      –     Facebook: Gilvander Moreira III

 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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