Conspiração para reinventar a fé em tempo de crise
“A verdade vos tornará livres”, Jo 8 31 ss). Essa foi a palavra que escutei de Jesus no evangelho meditado nessa manhã (da liturgia dessa quarta-feira na Igreja Católica). O texto diz claramente que Jesus falou isso “aos judeus que criam nele”. E é impressionante que aí quando Jesus fala aos que acreditam nele é que a polêmica aumenta e a oposição fica mais forte. Jesus mostra que não basta crer. É preciso permanecer na Palavra dele. O objetivo não é só crer, mas é de ter uma fé que nos mantenha permanentemente sob a palavra dele e aí sim essa verdade do reino de Deus pelo qual Jesus deu a vida nos liberta. Liberta de que? Os contemporâneos de Jesus esperavam a libertação política. Cristãos ligados a uma religião de resultados imediatos pedem libertação social (dinheiro, casa, saúde, etc). É possível que, historicamente, Jesus tenha tido muitas ligações com o grupo zelota, que depois de sua morte lutará para libertar Israel do império romano (ver o livro O Zelota de Reza Aslan). No entanto, o quarto evangelho, escrito já depois da guerra perdida contra os romanos, mostra Jesus indicando uma libertação mais de raiz, mais profunda no íntimo de cada pessoa e no coração da humanidade: passar de uma fé que nos coloca como servos e dependentes de Deus para uma condição livre de filhos e filhas que moram na intimidade do Pai e como filhos e filhas adultos, livres e autônomos.
Nos anos 70, eu ainda opunha a liberdade social e política a essa liberdade interior que eu chamava de caráter subjetivo e portanto menos urgente do que a outra. Hoje sei que as duas estão intimamente ligadas e dialeticamente dependentes uma da outra. E aí compreendo o que dizia o Mahatma Gandhi que, enquanto lutava pela independência política da Índia em relação ao império inglês, dizia a seus seguidores: “comece por você mesmo à mudança que você quer para o mundo”.
Nesses dias de quarentena e de crise mundial, mais do que nunca, me assustam expressões de fé e piedade que escuto e vejo por aí... Recebi no facebook, a afirmação de uma irmã que me acusava de provocar o coronavírus por ter aparecido no desfile da Mangueira no Rio. Eu e quem foi ao Carnaval pecamos. Ofendemos a Deus. Agora, ele nos castiga com a pandemia... Mas, muitos padres, pastores e grupos espirituais não chegam a dizer isso, mas nesses dias, pedem a Deus que se comova com o sofrimento da humanidade e resolva intervir para nos salvar dessa calamidade. Na Netflix, podemos ver um filme de comédia francesa que se chama: “O que eu fiz a Deus para merecer isso?” E a queixa é de uma família de classe média francesa que a filha casou com um africano e de família muçulmana. E o pai, escandalizado, pergunta: Como Deus, a quem eu sempre fui fiel, pode permitir uma tragédia dessas? Pobre de Deus, vendo agora a reação de tantos cristãos nessa epidemia, deve estar se perguntando porque o mandamento de “não pronunciar o nome divino” falhou tanto e até hoje ele é acusado de tudo o que de ruim o mundo e as pessoas resolvem cometer e sempre dizendo: “graças a Deus”.
Nesse contexto, compreendo o quarto evangelho. Até há poucos anos, eu achava os evangelhos escolhidos para esses dias (capítulo 8 de João) muito inadequados para hoje. Agora descubro que o problema é outro. Parece que a gente escuta o evangelho de Jesus, mas o interpreta sempre para os outros e não para a gente mesmo. Sou eu que tenho de passar de uma fé de dependência de Deus, como se fosse escravo para uma relação de cristãos adultos na fé, na estatura e na maturidade do Cristo (Ef 4, 13).
Mas, como fazer isso em uma Igreja que, no geral, ainda acha que para os católicos ficarem em casa na Páscoa, a solução religiosa será depender totalmente do clero ordenado e assistir missa minuciosamente celebrada no rito romano e por internet?
Que como dizia no século XIV o místico dominicano Mestre Eckart: “Que Deus me liberte do meu deus”, ou seja, que o Abba (paizinho) de Jesus me liberte do deus todo-poderoso e dominador que ainda tenho em mim como cultura (A citação de Mestre Echkart está em Obras Escolhidas, Edicomunicación, Barcelona, 1998, pp. 193 e 196).
(do meu Diário não cotidiano da Quarentena – 3ª circular).