Para comentar o evangelho desse 6o domingo comum do ano A, (Mt 5, 17- 27), reproduzo aqui uma página do novo livro "Conversa com o evangelho de Mateus" que será lançado nessa quinta-feira, 16, em São Paulo. Ali converso com a comunidade de Mateus, com a irmã Agostinha Vieira de Mello e com três amigos jovens Cladilson Nardino, Jonathan Felix e Junior Centenaro:
Cladilson:
Marcelo:
De fato, fazia uns trinta anos que, para
outras comunidades e outras culturas, Paulo e sua equipe haviam escrito que a
lei mosaica não era mais normativa. “Não estamos mais sob a lei” (Cf. Gl 3, 25;
4, 5. 21- 27; 5, 1- 4 e várias passagens da carta aos romanos). Se interpretássemos
ao pé da letra o que está no texto evangélico, poderíamos entender que vocês da
comunidade de Mateus estavam condenando Paulo e o seu grupo. De fato, no que
diz respeito à lei, vocês tomaram a posição contrária a dele. Quiseram, de todos
os modos, evitar a ruptura dentro do judaísmo entre os chefes das sinagogas e (muitos
dos judeus fiéis) e os que aceitavam o profeta Jesus. Trinta anos antes, Paulo
não tinha esse problema. Ao contrário, no mundo grego da Ásia Menor (atual
Turquia), ele queria libertar as comunidades de uma interpretação
fundamentalista da lei que dava aos rabinos um controle muito grande sobre as
comunidades.
Jonathan:
A comunidade de Mateus escreveu isso em um momento no qual Jerusalém e o templo haviam sido destruídos?
A comunidade de Mateus procurou ajudar os
irmãos a compreenderem que a proposta de Jesus não era de ruptura. Ao mesmo
tempo, era crítica com relação a uma religião que se baseando numa
interpretação rigorosa da lei acaba sendo totalitária. Não se tratava de dispensar a lei, mas de
interpretá-la de modo mais profundo e abrangente. O sentido mais profundo da
lei é ir à mais profunda raiz das suas motivações. Por isso, para obedecer de
modo verdadeiro à lei, é preciso ir à raiz da lei e ao seu espírito mesmo
quando é necessário superar a sua letra.
A
maioria das palavras de Jesus que o evangelho transcreve, deve ter recebido de
tradições anteriores às quais comunidades como a de Lucas também tiveram
acesso. Mas só Mateus conta os seis casos sobre os quais Jesus se opõe à
tradição judaica vigente na época das comunidades do evangelho (anos 80 depois
de Cristo).
Cladilson:
Marcelo:
Marcelo:
Ao contrário, não somente a legislação mosaica representa o que há de mais humano entre todas as legislações antigas, como a interpretação dos rabinos já pedia amor e misericórdia. “A finalidade da lei do talião (“olho por olho, dente por dente”) era justamente limitar e controlar a possibilidade de vingança”[1]. Em alguns casos, as comparações que Jesus faz atinge mais alguns elementos da tradição oral dos antigos (não diretamente a Torá escrita). A tradição judaica e o dito dos pais contém elementos muito diversificados e ricos, alguns em um sentido mais universal e humano e outros elementos e frases que se podem interpretar em um sentido mais estrito e rigoroso. Jesus entra nessa polêmica e toma posição criticando algumas posições mais vigentes no judaísmo de então. A sua proposta não é para cancelar ou mudar a tradição e sim para aprofundá-la e universalizá-la.
Assim, as
duas últimas proclamações do evangelho de Mateus no capítulo 5 formam um
conjunto sobre a nossa relação com o próximo e o inimigo. Estas são mais
transformadoras. De certo modo, mudam mesmo o que a tradição e a lei do Primeiro
Testamento propõem: “Ouvistes o que foi dito…” “eu porém vos digo”. Os três
casos em que Jesus muda a tradição é a lei quanto ao divórcio, quanto ao
juramento que a lei permitia e ele proíbe e a superação da chamada lei do
talião: “Olho por olho, dente por dente”. No lugar disso, eu lhes digo: “Não
resistam ao malvado…(…).
Exatamente. Quem quer viver a justiça nova do reino não pode se deixar dominar pela ira, nem condenar um irmão ou irmã por uma palavra má (Cf Mt 5, 21- 26).
Aparentemente, essa norma dada por Jesus parece muito rígida porque não se pode nem insultar o outro. Será mesmo assim?
“O mal existe
quando uma pessoa nutre rancor contra a outra. Todos os males, até a guerra e
as tempestades se originam em nossas mentes, nos pensamentos de ódio ou inveja
em relação a outra pessoa. Os europeus pensam que as doenças vêm dos micróbios.
Mas, os micróbios, de onde vêm?” (...) “A ferida causada por uma palavra má é
mais terrível do que um golpe no corpo. Uma palavra má pode, de fato, matar”[2].
Parece um pensamento muito próximo ao que, neste evangelho, Jesus ensina. Como seria bom que pessoas religiosas e até muito conscientes e engajadas pudessem rever e velar melhor sobre o poder benéfico ou também maléfico de suas palavras sobre outras pessoas e sobre a vida?
A seguir, o discurso da montanha trata da
questão do divórcio (5, 31- 32). O divórcio já era praticamente proibido pelas
escolas rabínicas mais conhecidas, a não ser no caso do marido descobrir que a
mulher o traiu sexualmente. O juramento em nome de Deus já era proibido desde o
Êxodo (20, 17). Os essênios consideravam tão culpável o juramento “verdadeiro”
quanto o falso. A Igreja anabatista proíbe qualquer juramento até juramento
militar ou de formatura. Em suas cartas, Paulo emprega expressões de juramento:
1 Ts 2, 5. 10; 2 Cor 1,23; Rm 1, 9, etc.
“Está escrito: “Amem o seu próximo e odeiem o
inimigo”. Eu, porém, lhes digo: “Amem a seus inimigos e orem por seus
perseguidores…” (Cf. Mt 5, 38- 47). Também na Bíblia já existem expressões de
amor aos inimigos. (Cf. Ex. 23, 4- 5;
Prov 25, 4).
Também a tradição dos escribascontém expressões que mandam amar aos
inimigos e perseguidores. Em parte alguma, a Bíblia ou seus comentários, mandam
odiar aos inimigos. Ao contrário, no Talmud há sobre isso textos belíssimos e
parecidos com este que Jesus nos dá. Um dos mais conhecidos ensina:
“Na festa das
tendas, a Escritura manda três vezes que nos alegremos. Na Páscoa, celebramos a
libertação e, entretanto, a Escritura não manda nos alegrarmos. Por que? Por
que naquele dia, os egípcios morreram e, mesmo se eram nossos inimigos, não
devemos nos alegrar quando outros choram”[3].
É claro que Jesus radicaliza o amor aos
inimigos como um mandamento e com uma motivação que é a mais ecumênica e
profunda: ser como Deus que ama e perdoa a todos.
Por que, então, esse tom polêmico e
acusatório exagerado? Será que toda essa polêmica era por causa das perseguições
que vocês estavam sofrendo? Já na proclamação das bem-aventuranças, Jesus
conclui dizendo: “Felizes (ou “em marcha” vocês que são perseguidos e
caluniados por causa de mim…” (Mt 5, 12). Agora, vocês insistem em ser
diferentes dos escribas (que vocês conheceram) e amar ao inimigo e perdoá-lo.
Que situação concreta está por trás disso? Será que, para nos dar este texto
belíssimo e tão radical, vocês partiram de uma polêmica contra os zelotas? De
qualquer modo, percebo dois elementos
que destaco para as nossas comunidades:
1 – A polêmica não é contra o judaísmo ou
mesmo o judaísmo observante.
2 – Mesmo sabendo que os primeiros
destinatários da polêmica possam ter sido os zelotas, é evidente que o texto
tem um alcance mais universal.
Como não interpretar essas palavras de modo
inadequado ou que não se aplicam à nossa realidade de hoje?