Blog Aqui vamos conversar, refletir e de certa forma conviver.

​Conversa, domingo, 09 de junho 2013

Celebrei hoje na Igreja das Fronteiras, sempre com a emoção de estar celebrando no mesmo altar onde o nosso mestre querido, Dom Hélder Câmara, tantas vezes celebrou. E também o profeta padre João Pubben que voltou para a Holanda, deixando aqui tanta saudade e nos fazendo tanta falta. Celebrar a missa ali naquele altar e com aquela comunidade é como um reencontro profundo com eles dois, um no céu e outro na Europa, orando por nós. 

Hoje, uma mãe jovem me pediu que oferecesse a Deus a sua filha pequena que ela não quer batizar agora e sim mais tarde quando a menina tiver condições de optar pelo batismo. Fiz um rito de acolhida da criança na comunidade, um representante da comunidade a ungiu com o óleo dos catecúmenos, invocamos sobre ela o Espírito Santo e toda a comunidade a abençoou. 

Fui celebrar e voltei do encontro do MTC. Ali, encerramos hoje o curso sobre Teologia da Libertação para jovens promovido pelo MTC (Movimento de Trabalhadores Cristãos). Fico feliz em ver o pessoal contente e ver que todos gostaram. Aprendo sempre desse diálogo com a juventude. Um grupo excelente, embora um pouco heterogêneo, alguns muito jovens e outros quase 30, mas a maioria mais jovens e quase todos universitários. Alguns da Paraíba (um grupo excelente) e outro do Recife e do Cabo. Partimos das questões que eles levantam à Teologia da Libertação e    a partir disso, fomos trabalhando sempre em grupo e síntese. A perspectiva era mais socio-política no sentido de que não era um grupo de gente tão ligada à fé religiosa. Mas, todos expressavam uma profunda fé humana e mesmo espiritual. 

No final, dei a eles um texto que partilho com vocês aqui, para o caso de alguém querer rever a história e o conteúdo da Teologia da Libertação. É um texto incompleto e propositalmente provocador. 

Teologia da Libertação apresentada a jovens

... Me chamarão subversivo e eu lhes direi: O sou.

Por meu povo em luta, vivo, com meu povo em marcha, vou.

Tenho fé de guerrilheiro e amor de revolução.

E entre Evangelho e canção, sofro e digo quanto quero.

Se escandalizo, primeiro queimei o próprio coração

                                                               ao fogo desta Paixão  crua do seu mesmo madeiro.

Incito à subversão contra o Poder e o dinheiro.

Quero subverter a lei que perverte o Povo em grei e o governo em Carniceiro.

(Meu Pastor se fez Cordeiro, Servidor se fez meu Rei).

Creio na Internacional das frontes levantadas

da voz de igual para igual e as mãos entrelaçadas ...

E chamo a Ordem de mal e o progresso de mentira.

Tenho menos paz que ira, tenho mais amor que paz.

                        Creio na foice e no feixe destas espigas caídas: uma morte e tantas vidas.

 Creio nesta  foice que avança  sob este sol sem disfarce

esta comum Esperança tão encurvada e tenaz!”

Dom Pedro Casaldáliga - Canção da Foice e do Feixe

Essas palavras com as quais tanta gente no mundo se identifica provoca também estranhezas e reações negativas. Como um bispo pode escrever esse tipo de coisas e o que tem isso a ver com a fé cristã? Nosso estudo sobre teologia da libertação tenta responder a isso, ao menos em parte. Esse tipo de profissão de fé, ao mesmo tempo cristã e ao mesmo tempo socialista, feita por Dom Pedro, chama mais atenção em um mundo essencialmente pastoso, pouco afeito a convicções profundas. Penso que o cineasta Woody Allen, com certo cinismo, ironizava isso, ao afirmar: “Marx disse que religião é ópio do povo. Para Freud, é projeção do nosso inconsciente. Nietzche afirmou que Deus morreu. Marx, Freud e Nietzche morreram e eu mesmo, nos últimos tempos, não ando me sentindo muito bem”. Por mais que sejamos da mesma geração e cultura dessa sociedade líquida, como chamou Zigmunt Bauman, precisamos acreditar e apostar na utopia e tornar possíveis nossos melhores sonhos coletivos. Na América Latina, a teologia da libertação ajudou e ajuda a unir dois sonhos importantes para a transformacão social e política do nosso continente.

Em 1930, José Carlos Mariategui, o grande pensador socialista peruano, escrevia em um ensaio, já em 1925: “A inteligência burguesa ocupa-se com uma crítica racionalista do método, da teoria, da estratégia dos revolucionários. Que mal-entendido! A força dos revolucionários não está na sua ciência, mas na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. É uma força religiosa, mística, espiritual [...]. A emoção revolucionária [...] é uma emoção religiosa. As motivações religiosas se deslocaram do céu para a terra. Elas não são divinas, mas humanas e sociais” (Mariátegui 1970, 22).

Mariátegui desenvolveu esta tese a partir da análise das sociedades peruanas e latino-americanas. Ele sabia que, na história do nosso continente, os grandes movimentos populares de insurreição contra a tirania e de mais justiça e igualdade para comunidades indígenas ou camponesas sempre começaram ou vinham entrelaçados de motivações espirituais, vindas das religiões indígenas e negras, ou do cristianismo messiânico. Em vários países da América Latina, as comunidades indígenas e afrodescendentes resistiram e continuam firmes diante da opressão e do massacre de mais de 500 anos. Nesses anos recentes, índios e negros têm se organizado e se constituído como protagonistas importantes de um novo processo social e político. Nesse processo, um elemento básico tem sido a força da fé, tanto da fé cristã, como das crenças e espiritualidades ancestrais dos diversos grupos e comunidades. Existe sim um Cristianismo ligado ao colonialismo e a opressão. Mas, existe também um modo de crer revolucionário.

1 – As raízes da Teologia da Libertação

Na história, em geral, a Igreja hierárquica sempre tomou posições favoráveis aos Colonialismos e contra as revoluções sociais. Enquanto isso, nas bases, sempre houve cristãos que intuíram a profunda relação entre fé cristã e processo de transformação do mundo. Em vários momentos, quem tomava esse caminho, para viver isso coerentemente, rompia com a Igreja.  A novidade que ocorreu na América Latina foi que a partir da década de 60, pessoas e grupos de gente pobre e oprimida entraram no processo revolucionário e fizeram isso como cristãos e exigindo apoio da Igreja. Isso ocorreu em Nicarágua, em El Salvador, como na Argentina, Chile, Colômbia e Brasil. Na Colômbia, Camilo Torres, padre e doutor em sociologia, entrou na guerrilha e declarou que fazia isso para celebrar a eucaristia de forma coerente. Comblin dizia que esses cristãos de esquerda “ocuparam a Igreja”. Daí surgiu a necessidade de aprofundar uma reflexão que desse justificação teológica e espiritual a esse caminho. Assim surgiu a Teologia da Libertação. Surgiu a partir de um longo processo e de várias raízes. Elenco algumas:

1º - a experiência de pessoas e grupos populares comprometidos com o processo de libertação e que viviam a fé no caminho revolucionário. No Chile, o movimento “Cristãos para o Socialismo” defendia que seus militantes deviam ser “comunistas na Igreja e cristãos no partido”.  

2º - a postura de vários bispos latino-americanos que começaram a dialogar com marxistas e ter posição favorável a esse processo.

3º - o aprofundamento dos estudos bíblicos e do conhecimento da Bíblia por parte do povo pobre – na América Latina a leitura bíblica popular mostrou que a Bíblia é a historia de um povo em luta por sua libertação.

4º - Na própria teologia, jovens teólogos latino-americanos sentiram a necessidade de romper com os paradigmas da teologia europeia, vendo nela sempre algo de colonialismo ou etnocentrismo cultural.

5º - A partir do Concílio Vaticano II, reunião de todos os bispos católicos em Roma, com o propósito de renovar a Igreja (de 1962 a 1965), a hierarquia católica começou a dialogar com o mundo. Na América Latina, a conferência dos bispos latino-americanos em Medellin (1968) adaptou o Concilio ao continente e declarou que a Igreja deve ser serviço de libertação a toda humanidade e a cada ser humano (Med 5, 15).

Em 1971, Gustavo Gutierrez, teólogo peruano, filho de índios, publicou “Teologia da Libertação”. A partir daí, em vários países do continente, essa teologia se desenvolveu a partir das bases e da prática dos cristãos nos processos de transformação do mundo. Alguns teólogos como Ruben Alves (presbiteriano brasileiro) e Hugo Assman, católico, desenvolveram mais a relação entre Teologia da Libertação e Sociologia.  Outros desenvolveram a relação entre a teologia da libertação e a economia (Franz Hinkelammer, Hugo Assman e Jung Mo Sung). Outros releram os assuntos clássicos da teologia a partir do contexto social e politico latino-americano (Leonardo Boff, Jon Sobrino e outros). Clodovis Boff fez sua tese de doutorado sobre o caminho metodológico da TL. Teologia da Libertação não é tanto uma reflexão sobre a libertação, como tema. Pode tratar de qualquer tema, Cristo, Igreja, Sacramento, Espiritualidade, Moral, mas é um modo de fazer isso, essa teologia, a partir da luta pela libertação.

2 – Etapas da Teologia da Libertação

1ª etapa: Nos anos 70 e ainda 80, quando essa teologia (a TL) se consolidou em todo o continente, o trabalho foi reler toda a fé cristã, a Bíblia e a organização da Igreja a partir das transformações sociais e das lutas do povo. Tratava-se de conquistar o espaço da Igreja (das Igrejas em geral) para a dimensão política transformadora.

2ª etapa: mesmo quando se conseguiu mexer nos ambientes de Igreja e sensibilizá-los ou mesmo transformá-los, havia ainda um desafio: mexer nos ambientes políticos da esquerda. A esquerda tradicional estava convencida de que toda religião é opressora e que os cristãos ou igrejeiros  eram carolas ingênuos que a esquerda devia instrumentalizar, mas assim que pudesse, transformá-los em bons ateus. Os cristãos inseridos descobriram que o dogmatismo não é somente das Igrejas. É também de certos grupos e pensamentos políticos.

3ª etapa: Em 1991, o comunismo real do leste europeu caiu. Na América Latina, o sandinismo perdeu as eleições e o socialismo entrou em descrédito. A teologia da libertação sofreu muito com isso. Teve de reinserir-se nas bases, voltar-se para a questão cultural, étnica e de gênero. A partir daí se desenvolvem mais teologias contextuais – negras, indígenas e feministas, além da eco-teologia ou teologia ecológica. Atualmente a teologia da libertação procura dialogar com teologias libertadoras de outras religiões e aprofundar uma teologia pluralista da libertação, comprometida com a transformação do mundo todo.  

3 – Desafios atuais

1 – A TL surgiu em um universo culturalmente religioso. Atualmente a sociedade é sem referências religiosas. O que existe de movimentos religiosos é principalmente constituído por movimentos reacionários e por uma espiritualidade alienada. A teologia da libertação não interessa mais nem mesmo aos ambientes populares. No fim da vida, Comblin dizia: a teologia da libertação optou pelos pobres, mas os pobres preferem a Igreja Universal do Reino de Deus e grupos neopentecostais.

2 – As próprias instituições eclesiásticas se tornaram, atualmente, mais fechadas e reacionárias. A religião entrou em crise e muitos lideres religiosos acham que saem da crise através de uma maior institucionalização e dogmatismo. Nenhuma Igreja oficial apoia teologias da libertação e ao contrario seus teólogos têm sido marginalizados e as vezes perseguidos.

3 – No mundo inteiro, mas também em nosso continente, parece que as próprias esquerdas estão desorientadas e perdidas. Há um cansaço nos movimentos sociais e a teologia da libertação não tem muito espaço. As vezes, sinto como se quiséssemos dar respostas a perguntas que ninguém mais está colocando. Existem minorias abraâmicas e por isso resistimos. Mas, é um desafio.

Conclusão

Esse texto é apenas um esboço que possa ajudar-nos a refletir. Se fosse elencar algumas perspectivas e linhas a seguir, eu apontaria:

1 – Assumir como caminho uma espiritualidade libertadora e a mística como elemento revolucionário. A religião está em crise, mas a espiritualidade, não.

2 – Reinserir-se nas bases e nos movimentos sociais de base. (Nos últimos anos, a teologia da libertação foi meio marginalizada e as vezes perdeu as bases).

3 – No lugar da globalização falsa do Capitalismo, buscar uma integração continental e mesmo do mundo dos pobres a partir da solidariedade e da interculturalidade e do ecumenismo cultural e religioso.

4 – entrar em um diálogo mais profundo com a juventude, a partir dos assuntos e interesses da juventude de hoje, urbana e secularizada.

Só para concluir:

Há alguns anos, um jornal brasileiro publicou uma pesquisa feita por professores do Rio de Janeiro. “A experiência consistia em retirar um sapo de uma lagoa com a água do seu ‘habitat’ normal. E fizeram com o sapo uma experiência diferente. Colocaram o sapo em uma água quase fervendo. Imediatamente o sapo deu um pulo e caiu fora do recipiente. Fizeram outra experiência. Colocaram o sapo em um recipiente com água fria e começaram a aquecer o recipiente pouco a pouco. O sapo não tomava qualquer atitude diferente. Ia tranquilamente aceitando o aquecimento progressivo até a água ferver. E morria sem saber que estava morrendo. Morria aos poucos, sem se dar conta de que estava sendo cozinhado. No entanto, se voltavam a colocar um outro sapo, de repente, em uma água fervendo, imediatamente ele dava um pulo e caía fora. Meio chamuscado, mas vivo” (Jornal O Globo, 20/ 02/ 2000, 26). Infelizmente, na vida humana e espiritual, isso também ocorre. Se nos deixamos, pouco a pouco, contagiar pela mornez ou tibieza interior, aquilo que os antigos espirituais chamavam de acédia, a rotina vai tomando conta da vida, e o fogo do amor se apaga, sem que a gente nem perceba.

O critério de espiritualidade socialista nos é dado por Monsenhor Oscar Romero que declarou em 07/ 01/ 1979: “Minha posição de pastor me obriga a ser solidário com toda pessoa que sofre e a empenhar toda minha vida na da dignidade de todo ser humano” (Sobrino 2008, 249).

O processo revolucionário é leigo e pluralista. Participamos dele, assim como um místico muçulmano Ibn ‘Arabi no séc. XII escreveu dos movimentos sociais da Idade Média: Meu coração tornou-se capaz de qualquer forma. É um pasto para gazelas e um convento para cristãos. É a Caabá do peregrino, as tábuas da Torá judaica e o livro do Alcorão. Sigo a religião do amor-solidariedade. Qualquer caminho que tomemos, se montarmos no camelo do amor, o encontraremos. Essa é a minha fé. (Teixeira 1985, 203-204)

Alguns livros importantes para vc aprofundar esse assunto:

1.  Espiritualidade da Libertação – Dom Pedro Casaldáliga e Jose Maria Vigil. Ed. Vozes, 1990.

2.  O Cristo Libertador – Leonardo Boff (Vozes).

3.  Acompanhem o site do IHU – Instituto Humanitas da Universidade Unisinos – São Leopoldo, RS. WWW.ihu.com.br.

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

Informações