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Conversa, quarta feira, 03 de setembro 2014

Acabo de vir de dois compromissos que me tomaram essa noite. O primeiro foi o fato de que, por iniciativa do deputado Daniel Coelho, a Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco decidiu me dar a medalha de honra ao mérito em educação Paulo Freire. Eram três homenageados: o cacique Marcos Xucuru recebeu a medalha de Direitos Humanos, o professor Ricardo Brennand, o de reconhecimento da valorização da cultura pelo Instituto Ricardo Brennand e eu a medalha Paulo Freire como educador. A cerimônia foi simples e afetuosa. Durou menos de uma hora e teve uma audiência enorme. O salão nobre da Assembleia estava cheio e absolutamente lotado em seus corredores e na ala superior totalmente tomada. Muita gente conhecida e algumas presenças que me alegraram muito: a consulesa da Venezuela e o coordenador do MST em Pernambuco (Jaime Amorim).

Na hora H descobri que tinha de falar apenas dez minutos, mas o que disse se baseou nesse texto que eu tinha preparado: 

Senhor Presidente, senhores deputados, senhores e senhoras, irmãos e irmãs, 

Antes de mais nada quero agradecer ao deputado Daniel Coelho e a toda a Assembleia legislativa do meu Estado de Pernambuco essa escolha do meu nome para receber a medalha de honra ao mérito em educação Paulo Freire. Também queremos agradecer de coração ao deputado Isaltino Nascimento a indicação do nome do Cacique Marcos Xucuru para receber a medalha de honra ao mérito em Direitos Humanos. De fato, nós todos nos sentimos unidos à luta desse grande líder indígena em defesa dos índios do Nordeste e no caminho importante da Comissão Nacional de Políticas Indigenistas da qual o Cacique Marcos é membro. Também somos gratos ao deputado Tony Gel pela indicação do Instituto Ricardo Brennand para receber a medalha de honra ao mérito cultural Gilberto Freyre. De fato, nós todos, pernambucanos, nos sentimos honrados de abrigar no Recife o Instituto Ricardo Brennand com uma imensa riqueza cultural. No site da Assembleia, mereceu destaque o fato de que o Instituto tem a maior coleção privada do mundo de obras do pintor holandês Frans Post e tem em sua biblioteca 60 mil itens sobre o Brasil holandês.

Receber essas medalhas é uma  alegria,  ao mesmo tempo em que ela aponta  para uma  grande responsabilidade. Penso falar em nome dos meus dois outros companheiros que as recebem, quando afirmo que as recebemos não tanto por merecermos, mas bem mais para merecê-las. Em um contexto social como o que vivemos hoje, receber uma medalha que traz o nome de Paulo Freire pode significar a missão de testemunhar a atualidade das intuições mais profundas desse grande educador e humanista, do seu método pedagógico e da consagração de sua vida à educação, aos direitos humanos e à expressão livre e diversificada das culturas. Eu não sou especialista em Paulo Freire e nem aqui é o lugar e o momento para dissertar sobre todo o legado desse grande educador. Aliás, como me escreveu uma amiga educadora em Goiânia, GO, “Paulo Freire é muito falado e comentado, mas pouco conhecido e menos ainda seguido de forma séria e coerente”. Seja como for, posso e devo testemunhar que, na minha vida, sem dúvida, a grande herança que recebi de Paulo Freire foi a centralidade radical do diálogo na educação, nas relações humanas e no próprio modo de ser.

Comumente, o termo diálogo é usado para designar qualquer conversa ou encontro humano, mas, é claro que, como todas as palavras, essa palavra também pode ser profanada. Dom Hélder Câmara contava que em um campo de concentração nazista, foi encontrado um instrumento de suplício, um chicote, no qual, por zombaria, estava escrito um nome: diálogo. Ele comentava: “Isso que os totalitários não entendem, repelem e tentam cobrir de ridículo deve ser para nós uma herança sagrada. Nessa sociedade que escuta tão pouco, devemos nos constituir como discípulos do diálogo. (...) O diálogo ajuda-nos a conhecer nossas verdadeiras medidas. Impede que nos fechemos em nosso egoísmo. Abre-nos ao outro e a Deus”[1].

Dom Hélder liga o diálogo à relação com a pessoa que pensa diferente e discorda de mim. De fato, na etimologia do termo, o prefixo grego dia contém a ideia de separação e libertação. Logos é a capacidade de intelecção, de descoberta e de criação de sentido em tudo o que captamos e sentimos. Então, Diálogo significa o esforço de penetrar no discurso interior, nas razões mais profundas do pensar e sentir do outro.  Há diálogo quando há comunicação (pode nem ser com palavras) que tem por finalidade a descoberta de uma verdade (não necessariamente intelectual) importante para o crescimento e a vida das pessoas ou comunidades que se colocam nessa busca comum.

Em primeira instância, e não em última, nascemos todos autocentrados. Estamos todos permanentemente sujeitos às influências nocivas que satisfazem o nosso ego e tendem a nos imobilizar quando se trata de correr riscos e abrir mão de prestígio, poder e dinheiro. Daí a necessidade de uma educação profunda da consciência e da sensibilidade das pessoas e das coletividades. “O amor é um produto cultural”, teria dito Lênin. Ele resulta do desdobramento de nosso ego e supõe educação para amar. Por isso, são necessárias práticas educativas que infundam valores altruístas, gestos solidários, ideais sociais pelos quais a vida ganha sentido e a morte deixa de ser encarada como fracasso ou derrota.

Por isso, o papel do educador não pode ser apenas transmitir conhecimentos, facilitar pedagogicamente o acesso ao patrimônio cultural da nação e da humanidade. Nem o papel do educador pode ser reduzido a formar mão de obra especializada ou qualificada para o mercado de trabalho. A educação é suscitar nas pessoas o espírito crítico e a militância transformadora para construirmos um mundo novo possível. Isso supõe uma formação permanente de educandos e educadores em um diálogo interativo e profundo. O mais importante é o trabalho pedagógico, o estímulo ético, tarefa na qual os professores desempenham papel preponderante, na medida em que lidam com a formação da consciência e da prática das novas gerações.

Só se pode chamar de verdadeira educação o processo que forma seres humanos felizes, dignos, dotados de consciência crítica, participantes ativos do desafio permanente de aprimorar os sistemas sociais e políticos no sentido do amor solidário, da igualdade social e da justiça. Hoje, se fala tanto e de modo tão banal em consciência e conscientização que, facilmente, nos  esquecemos de que foi Paulo Freire quem inventou o termo conscientização e como um processo dialético e que só se dá em uma dinâmica de diálogo interativo e educativo. A conscientização é um processo que só pode ocorrer em um contexto de relação comunitária e em uma dinâmica de crítica construtiva e auto-crítica. Para isso, cabe a quem educa suscitar nos educandos apreço aos valores que estimulam o altruísmo, a solidariedade, o serviço   desinteressado às causas coletivas, ainda que a fonte desses valores não seja estritamente ideológica, mas também religiosa ou espiritual.

Caminhar nesse sentido implica vencer alguns desafios da atual conjuntura. O primeiro deles é superar o avassalador processo neoliberal de desistorização da história. Sem perspectiva histórica não há consciência nem projetos políticos. Ao enunciar que “a história acabou”, o neoliberalismo quer nos incutir a convicção de que o tempo é cíclico, como para os antigos gregos, e qualquer tentativa de historicizá-lo é inútil, até mesmo porque a humanidade, como apregoam os neoliberais, já atingiu o seu mais alto patamar civilizatório, consubstanciado no sistema capitalista, capaz de comportar a única democracia possível...

Em uma sociedade assim, cada vez mais se torna atual, a tese de Theodor Adorno de que o desafio mais urgente da educação hoje no mundo é desbarbarizar a sociedade. Ele dizia: “Entendo por barbárie uma sociedade que, de um lado, se encontra em um alto grau de desenvolvimento tecnológico e, do outro, mantém as pessoas privadas de poder viver e expressar a sua dignidade humana. Isso se dá não apenas por não terem, em sua maioria, acesso à formação humanitária, mas por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva ou por um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda a civilização venha a explodir”[2].

Paulo Freire afirmava que somente a Educação não pode mudar a sociedade, mas, ao mesmo tempo, nenhuma sociedade mudará sem que a educação desempenhe um papel fundamental. E nessa educação humanitária e libertadora, o diálogo é o elemento fundamental e básico. Um diálogo que inclui uma dimensão interior: o diálogo comigo mesmo, o diálogo com os outros e o diálogo como postura de abertura e comunhão com a natureza e o cosmos. Para quem tem fé, diálogo com o mistério que as religiões chamam de Deus.

Paulo Freire, em sua Pedagogia do oprimido, acentua que a verdadeira educação é a que conscientiza o educando sobre as contradições do mundo. Essas contradições, uma vez conscientizadas, desacomodam o educando, impelindo-o a se tornar agente ou protagonista de transformação da realidade. Para alcançar esse objetivo, Freire afirma que é importante superar o que ele chama de “educação bancária” e iniciar o processo de uma educação dialógica, conscientizadora, problematizadora e contextualizadora, de modo a superar a distância entre educador e educando e tornar-se um exercício permanente de prática da liberdade[3].

Esse processo humano  tem de ser central no esforço educativo da Escola e de toda civilização que quiserem ir além dos ensinamentos técnicos para atingir uma formação integral. Já em 1965, portanto há quase 50 anos, Paulo Freire escrevia: “O ser humano é um ser de relações e não só de contatos. Não apenas está no mundo, mas com o mundo. Estar com o mundo resulta de sua abertura à realidade, que o faz ser o ente de relações que é. (...) No jogo constante de suas respostas, no próprio ato de responder, a pessoa vai mudando a si mesma. Organiza-se. Escolhe  a melhor resposta. (...) Nas relações que o ser humano estabelece com o mundo há, por isso mesmo, uma pluralidade na própria singularidade. (...). E também há uma nota presente de criticidade. Ademais, o ser humano é capaz de transcender. A sua transcendência, acrescente-se, não é um dado apenas de sua qualidade “espiritual” (...). A sua transcendência está também para nós, na raiz de sua finitude. Na consciência de ser inacabado e de saber que a sua plenitude se acha na capacidade de amar. Isso ocorre na ligação do ser humano com seu Criador, ou para os que não creem em Deus, na relação íntima e misteriosa com o mistério mais profundo que dá sentido à vida”[4].  

Ao receber essa medalha, me comprometo em, junto com meu  irmão Marcos Xucuru na sua luta pelos direitos dos índios à terra, a viver sua cultura própria e a dizer sua palavra de sabedoria a toda a nossa sociedade, assim como junto com o Instituto Ricardo Brennand, em seu trabalho de valorização das culturas, seguir nesse caminho e aprofundar cada vez mais esse compromisso de transformação interior e de luta pacífica pela transformação do mundo. As religiões deveriam ajudar a humanidade nesse processo educativo. Infelizmente, não é o que tem ocorrido na história. Muitas vezes, as religiões têm sido fatores de discriminação e de violência umas contra as outras. Aqui mesmo em Pernambuco, eu participo do Fórum Diálogos pela Diversidade Religiosa e contra as discriminações e é um aprendizado permanente a convivência, o respeito e a escuta interior das outras tradições e caminhos espirituais. Do mesmo modo, nos movimentos sociais, a gente tem de aprender todo dia o antigo pensamento de Cipriano de Cartago, um pensador cristão do século III: “A unidade abole as divisões, mas respeita e valoriza as diferenças”.

Na tradição judaica, uma velha história conta que uma sinagoga, em uma noite,  alguns homens estão sentados à espera do novo dia. Um velho sábio encontra-se rodeado por alguns discípulos. Então, o sábio pergunta: - Quando é que nós conseguimos reconhecer o momento em que a noite se completa e o novo dia desponta?

Um discípulo toma a palavra e diz: - Quando as estrelas desaparecem no céu e a terra passa a ser acariciada pelos raios do sol. - Não, responde o mestre. - Então, quando conseguimos distinguir à distância, sem qualquer dificuldade, um cão de um carneiro. - Não, diz de novo o mestre. - Mas quando então? – perguntam em conjunto os discípulos. - Depois de um instante de silêncio, o velho sábio responde:

- Tu reconhecerás o momento em que o dia desponta quando, contemplando o rosto de um homem qualquer, nele reconheceres o teu próprio irmão. Caso contrário, no teu coração será ainda noite[5].

Essa história nos confirma o pensamento de outro grande educador que partiu do nosso meio há alguns meses e que quero ainda homenagear aqui. Ele afirmou: “Para ensinar, você só precisa saber. Para educar, precisa ser” (Ruben Alves). Muito obrigado!


[1] - DOM HÉLDER CÂMARA, Revolução dentro da Paz, Rio de Janeiro, Ed. Sabiá, 1968, p. 90- 91.

[2] - Cf. THEODOR ADORNO, A educação após Auschwitz, (em português, existe na internet).

[3] - Cf. PAULO FREIRE, Pedagogia do Oprimido, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974, pp. 67 - 68.

[4] - Cf. PAULO FREIRE, Educação como Prática da Liberdade, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967, p. 39- 40.

[5] - Parábola hassídica, citada por DUCROT, B. Sobre a reconciliação em Angola. Revista OMNIS TERRA, nº 116, ano XIII, jan. 2007, p. 26.

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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