Candomblé da Mãe Amara - no bairro de Dois Unidos, no Recife, longe do centro e na periferia da periferia do norte do Recife. Uma ladeira de acesso difícil para carro e, do terraço simples e pobre, a riqueza de uma vista linda de parte da cidade. Em frente à casa o Iroco, a árvore sagrada dos Iorubás. Na varanda, muita gente esperava a última noite do mês de maio. A casa simples de bairro, adaptada para o culto dos Orixás, tem uma sala que ficou maior porque derrubaram uma parede de quarto. O telhado de zinco esquenta muito.
No Recife não é estranho que uma comunidade de Candomblé tenha se reunido todas as noites para louvar a Maria e fazer as devoções do mês de maio, com alguns cânticos de comunidades eclesiais de base ("Da cepa brotou a rama) e a Ladainda cantada. Vários centros de Xangô (como se chamam no Recife os templos afro) são de natureza sincrética e mesmo os intelectuais da comunidade defendem isso. Muitos fieis unem a espiritualidade do Candomblé à fé cristã como algo profundamente coerente e belo. Nesses tempos em que, a Igreja redescobre a espiritualidade ecológica, o Candomblé nos chama a uma profunda contemplação dos Espíritos da Terra e da Natureza como manifestações do Espírito Divino e através do Xirê, os fieis recebem esses Orixás e vão se transformando quase visivelmente em almas da Terra, da Água, das Árvores, do Vento e de toda a natureza.
Também não é estranho que essa comunidade tenha me pedido para na última noite do mês celebrar uma missa no templo do Ilê. Afinal, essas comunidades do Recife veem em meus olhos e eu não escondo o imenso amor que lhes dedico. Sabem a gratidão profunda que tenho pelo fato de que, mesmo em meio a muitas perseguições e dificuldades, essas comunidades souberam preservar para as novas gerações a sabedoria dos ancestrais e a espiritualidade da profecia da Terra. eu gostaria de responder que a comunhão que a comunidade pratica entre si e com todos os elementos do universo, noite após noite, dia após dia, já é a eucaristia cósmica bem mais sacramental do que a que eu poderia coordenar junto com eles e elas, mas isso não me compete dizer. Aceitei sim celebrar em meio aos símbolos sagrados dos Orixás e com toda a comunidade que ali se reúne.
Respondi ao pedido de Vera Baroni, minha amiga e uma das ebomi (consagradas) da comunidade, contente pela confiança que depositam em mim e pela graça de poder louvar a Deus em união com esses irmãos e irmãs que, há poucos dias, receberam uma ameaça de agressão por parte de um grupo neopentecostal. Quis, então, dar um testemunho de que apoio e valorizo a espiritualidade do Candomblé como palavra divina que Deus me fala no mais íntimo do meu coração de monge e de padre católico. E não somente isso. Tento de alguma forma pagar a dívida moral e espiritual de minha Igreja que durante séculos falou mal e perseguiu as tradições afro-brasileiras.
Alguém nosso que soube do convite e da minha aceitação me advertiu: o arcebispo não permitiria missa em terreiro de Candomblé.
Como o pessoal do povo chama qualquer culto de missa, fui pensando em fazer uma celebração da Palavra, talvez com uma partilha de alimento abençoado. Afinal, pensei que eles não estavam pedindo uma eucaristia no sentido rigoroso do termo.
Quatro irmãs da nossa comunidade das Fronteiras (Vera Scheneider, Teresa Carvalho, Penha, minha irmã e Laura Pessoa quiseram ir comigo e com Irineu Falcão. Chegamos e encontramos já todos reunidos em redor de uma mesa com velas, com uma imagem de Maria e com um pão e um cálice de vinho. Ao lado, altar com várias imagens de santos e todos os sinais da devoção católica popular.
A Yalorixá (Mãe Amara) está muito fragilizada, em uma cadeira (não se move mais), mas muito lúcida e acompanhando tudo com muita atenção. Um babalaô amigo, de outro templo do Candomblé da região é quem estava presente e fazia o papel de coordenador da comunidade.
Ele começou invocando Iemanjá com um cântico tradicional de invocação do Orixá. Os atabaques sagrados soaram de forma solene e comovedora. Todos participaram tocando na terra santa e saudando os espíritos da Terra e do ar. A alegria contagiante mostrava a comunhão de todos/as ali presentes. Saudei a comunidade dizendo com toda sinceridade minha alegria em estar ali e como eu gostaria de dar força de resistência à comunidade diante das maledicências e perseguições que sofrem por parte de grupos que se dizem cristãos.
Duas ebomis e uma mãe de santo cantaram a Ladainha de Nossa Senhora e Vera Baroni ao meu lado, vestida como uma verdadeira mãe de santo, proclamou o evangelho da visitação de Maria a Isabel.
Nem precisava comentar. Assim como a visitação foi como um primeiro Pentecostes do Novo Testamento, antes mesmo do nascimento de Jesus, é preciso reconhecermos o Espírito Divino presente no mundo, antes mesmo da vinda de Jesus. Como o Espírito de Deus se apossou das duas mulheres e as fez profetizar. No contexto do serviço que Maria veio prestar a Isabel. Como gostaria que aquela nossa visita fosse assim uma profecia de amor que revelava a presença divina uns nos outros. Ali, naquela colina sagrada, mora Deus. Ali o Espírito toma o coração de cada um/uma e constrói uma unidade que o mundo não pode explicar e que ninguém poderá destruir.
Perto de mim, uma senhora chorava de emoção. Algumas crianças sorriam o tempo todo. Pareciam anjos em um quadro barroco. Os atabaques tocaram para dizer à comunidade que os Orixás aprovavam tudo e estavam ali conosco fazendo uma comunidade única entre o céu e a terra. Fiz memória da ceia de Jesus em um ágape ecumênico. Percebi que as pessoas todas sabiam responder às palavras da Liturgia (O Senhor esteja convosco - etc). Todas oraram o Pai Nosso com muita unção e carinho. Todas partilharam o pão, o vinho e uvas que havia para todo mundo - com muita devoção e com verdadeira unção.
Fiquei desejando que em nossas comunidades católicas ou evangélicas dominicais, as pessoas se dessem a comunhão eucarística umas às outras com tanto carinho e espontaneidade. Consegui controlar a emoção e ouvi que cantavam: Da cepa brotou a rama.... E junto com a profecia de Isaías que o boi pastará com o leão e que o Espírito de Deus se apossará de todos/as.
Isso pareceu se cumprir ao pé da letra, já que bastou darmos a bênção e a comunidade continuou fazendo o Xirê. Quase imediatamente, sob o toque dos atabaques, alguns receberam os Orixás e se tornaram Iemanjá, Xangô e Oxum. Era emocionante ver com que fé e entusiasmo, as pessoas viviam profundamente a mística da intimidade e do receber Deus em si mesmas. Uma verdadeira comunhão - um imenso transe de amor...
Orei para que o Espírito renove em nossa Igreja essa dimensão esotérica - mística e carismática - dimensão ainda muito perdida no nosso modo de viver a fé, mas que ela venha absolutamente unida a uma dimensão revolucionária que nos faça testemunhar que o reino divino - o projeto de Deus no mundo está começando a acontecer. Amém.