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Conversa, quinta feira, 03 de maio 2012

Bolivarianismo

Estou voltando do seminário sobre bolivarianismo na Faculdade de Ciências Humanas de Olinda e o lançamento do meu livro "Para onde vai Nuestra América". O painel foi profundo e excelente. Foi formado por Pedro Lapa que falou sobre economia, Maria Fernanda Coelho, sobre o projeto de casas populares na Venezuela, o companheiro Jaime Amorim sobre a questão da terra e o MST. Na hora ainda chegou Carlos Ron, adido cultural da embaixada da Venezuela no Brasil e ele nos deu um testemunho marcante. No final, eu falei mais ou menos o seguinte: 

O tema desse seminário e a oportunidade de realizá-lo aqui na Faculdade de Ciências Humanas de Olinda é muito feliz porque de certa forma ele concretiza um antigo sonho de Dom Hélder Câmara, de quem tentei nesse livro que está sendo relançado hoje, dar um testemunho que pudesse resgatar sua herança, principalmente para a juventude atual. Em 1981, Dom Hélder escrevia para um amigo seu, bispo argentino Jerónimo Podestà: “Em 1985, eu devo apresentar minha renúncia ao ministério de arcebispo de Olinda e Recife. Então, se Deus permitir e eu ainda tiver saúde para isso, quero me consagrar à realização de três sonhos. São sonhos que se complementam e que exigirão diversas tarefas, conforme os carismas recebidos:

A) Sonho de uma autêntica integração latino-americana sem imperialismos de fora nem imperialismos de dentro.

B) Sonho de tornar possível para o ano 2000 o Concílio de Jerusalém II.

C) Sonho de diálogo autêntico com os mundos dos mundos"[1].

O primeiro sonho que ele tinha era esse da integração latino-americana e podemos dizer que, mesmo em processo ainda inicial, estamos realizando esse sonho do Dom. E não é somente o sonho de uma América Latina integrada. É de uma América Latina, como dizia Dom Hélder, livre de imperialismos. O professor Boaventura de Sousa Santos afirmou: “A América Latina tem sido o continente, onde o socialismo do século XXI entrou na agenda política” (Santos 2010, 42). É um processo que tem várias etapas, como: 

1. a libertação das dominações sociais e econômicas estrangeiras

2. a consolidação de um processo verdadeiramente democrático e de participação popular

3. finalmente a transformação da estrutura social e econômica que permita uma maior igualdade social.

Esses três elementos do processo não são etapas obrigatoriamente sucessivas, mas em vários países do continente esse processo está acontecendo de uma forma nova e profunda, porque a partir das culturas indígenas e populares. Aqui nós vimos alguns elementos desse processo como a democratização do acesso à terra e a a uma justiça no campo sem o qual nenhum dos outros direitos fundamentais é obedecido. Jaime Amorim falou disso. Também vimos como está processo da democratização do direito de habitar dignamente e conquistado de forma solidária. É o trabalho maravilhoso de Maria Fernanda Coelho. Finalmente, o desafio econômico que acompanha esse processo para evitar cair no tipo de Capitalismo neo-liberal que Pedro Lapa tão bem denunciou aqui. Sem dúvida, esses elementos são fundamentais, mas eles têm todos uma mesma raiz: o modo de olharmos o mundo e uns aos outros, ou seja, a cultura. Essa visão do mundo e da vida se inspira em Simon Bolívar, um venezuelano do começo do século XIX que consagrou sua vida a libertar os países da América do Sul e conseguiu em poucos anos libertar do domínio espanhol a Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia e chegou a influenciar na libertação da Argentina. Não ficou como presidente ou chefe em nenhum dos países que conquistou e morreu aos 47 anos, pobre e esquecido. Bolívar foi de uma das famílias mais ricas da Venezuela, se formou na França e Espanha e entretanto morreu pobre e meio sozinho, apenas com a alegria de ter, por onde passou, proibido a escravidão dos índios e dos negros. Seu ideal foi traído por companheiros seus e em todos os países que ele libertou se instalou uma república da elite que continuou oprimindo os negros, índios e caboclos da mesma maneira que os espanhóis os tratavam antes. Desde os anos 70, principalmente em Venezuela, surgiu nos bairros populares um novo bolivarianismo, não mais como movimento armado e insurrecional, mas que mantém o que o presidente Chávez chama a árvore de três ramos do bolivarianismo:

1º - a prioridade para a educação. Não haverá mudança no mundo sem uma democratização da educação e uma educação de qualidade. Esse ramo do bolivarianismo vem de Simon Rodriguez, filósofo, discípulo de Rousseau e que foi mestre de Bolívar.

2º - uma união entre a sociedade civil e o Estado, representada na união entre civis e militares. Esse ramo veio de um seguidor de Bolívar, Ezequiel Zamorra, general e ao mesmo tempo educador popular.

3º - a opção de partir das culturas indígenas e negras até agora marginalizadas e ignoradas. Esse elemento é de certa forma novo no bolivarianismo e creio que o presidente Chávez tem sido o seu principal inspirador.

É claro que há outros elementos como a igualdade de gêneros entre homem e mulher, a questão ecológica e outros desafios a vencer. Entretanto, me parece que o mais importante é que esse horizonte novo provém de uma paixão. Não é algo apenas racional e que se move pelo intelecto. Esse processo é uma história de amor e tem raízes mais profundas na espiritualidade das comunidades indígenas e negras que releem o Cristianismo a partir de suas culturas próprias, portanto, um Cristianismo desocidentalizado ou deseuropeizado. Termino essa conversa simplesmente acenando para três características desse cristianismo assim libertado do dogmatismo e da forma europeia ou mesmo romana.

O primeiro elemento dessa espiritualidade é a centralidade do projeto divino para o mundo. Então crer em Deus é apostar nesse projeto socialista, justo e igualitário e o caminho da fé consiste acima de tudo em trabalhar e lutar para que esse projeto se realize. Foi isso que Jesus fez no mundo. Esse é o conteúdo do seu evangelho: o anúncio do reino e o testemunho de que ele vem e vem logo.

Um segundo elemento dessa espiritualidade é que a vinda do reinado divino no mundo suscita uma transformação radical de todas as estruturas, o que podemos chamar de “revolução permanente”, revolução cultural e para a qual é fundamental nos prepararmos e principalmente nos munirmos de um profundo senso crítico.

Um terceiro elemento dessa espiritualidade é que essa transformação não atinge somente a humanidade, mas a própria natureza, todo o universo. Na carta aos romanos, Paulo escreveu: o universo inteiro sofre como em dores de parto, esperando a libertação (Rm 8, 23). Essa dimensão ecológica e holística da espiritualidade é fundamental para o bolivarianismo no qual somos convidados a participar. No Brasil é um termo que ainda não parece maduro e até provoca medo em alguns setores. Dom Hélder Câmara o usou nos anos 65 e 66 e disse que conosco ou sem nós esse processo se fará e que ele achava fundamental que nós colaborássemos para isso. O primeiro passo para nós aqui entrarmos nisso é nos sentirmos não somente brasileiros, mas latino-americanos, especificamente sul americanos. Tentemos compreender isso ouvindo e cantando junto com Mercedes Soza na bela canção “Es Sudamerica mi voz”. Vamos ouvir essa música: (quem quiser ouvi-la, coloque esse nome no google es sudamerica mi voz que encontra gravações de Mercedes Sosa que vale a pena ouvir):   


[1] - CLELIA LURO, El Mártir que no mataron, Hélder Câmara, Madrid, Editorial Nueva Utopia, 2002, p. 100- 102.  

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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