Ontem, tive a conversa com alguns pastores (poucos) sobre como ler a Bíblia a partir dos pobres. Insisti em partir do amor solidário e da ânsia pela libertação de todos. Mostrei como na Bíblia, do começo ao fim, se revela uma linha que aponta para um projeto ou programa de Deus em relação ao mundo e a nós. E aí conversamos sobre os métodos possíveis de serem usados na leitura bíblica, especialmente o diálogo e a formação de grupos de vida, como os círculos de cultura do Paulo Freire.
À tarde, o pastor Fred, meu amigo, me levou para um passeio de carro por Los Angeles. Fomos até Malibu, a praia rica no oceano (Pacífico) sempre azul, um azul tão vivo que impressiona. Gostei de conhecer, mas é uma beleza meio estática e me dá uma impressão quase de artificial. Em um determinado momento, ao ver todos os nomes em espanhol, não pude deixar de comentar: "Tudo isso aqui era México". E Fred me respondeu: "Sim. Os Estados Unidos tomaram do México".
No começo da noite, uma ceia junto com famílias de migrantes latino-americanos aqui do bairro (North Hills). Gente simples, pobre e muito simpática. As crianças correndo pelo salão, como tomando posse do espaço. E, nas mesas, as pessoas, famílias inteiras, repartindo o alimento. Toda a comida tinha sido trazida por eles. Muita comida: arroz, galinha e crepe salgado... Uma espécie de salada de maionese... Uma comida tipicamente de El Salvador ou Guatemala. E refrigerante. No final, pudim de leite...
No meio da refeição, um oficial da polícia que me pareceu bem inserido e estimado pelo pessoal (deve ser mexicano) me perguntou: "No Brasil, vocês têm policiais amigos?". Tive vontade de responder: "O único lugar em que eu vi policiais amigos do povo foi na Venezuela bolivariana". Mas não quis ser indelicado e respondi: "No Rio de Janeiro, o governo criou uma polícia pacificadora para as favelas. Mas, conforme algumas notícias e denúncias, ninguém pode trazer paz através da força armada. Só a convivência de igual para igual traz paz e solidariedade.
Acabo de ler na UOL sobre a morte do poeta Manoel de Barros. Drummond o chamou de "o maior poeta brasileiro vivo". Apesar de não conhecê-lo, tinha profunda admiração por ele e penso que ele exerceu seu carisma de grande poeta como o caráter de um verdadeiro profeta da ecologia, das relações humanas e da verdade mais profunda de cada ser humano. Adorei o filme que fizeram sobre ele e só o título diz muito: "Só 10% é mentira".
Em homenagem a ele, partilho com vocês dois poemas de Manoel de Barros que recebi, via email, de uma amiga:
O apanhador de desperdícios
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
Retrato do artista quando coisa
A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.