São sete horas da noite dessa quarta-feira. A periferia de Bérgamo, no norte da Itália, é como qualquer periferia de cidade, desorganizada e sem beleza. E com a quantidade imensa de migrantes e clandestinos que fogem das guerras, da fome e das consequências do aquecimento global no mundo dos pobres começa, cada dia mais, a se parecer com a periferia de uma de nossas cidades brasileiras. Daqui se escuta o barulho dos carros e caminhões que passam a toda velocidade pela rodovia que liga Milão ao oeste e Veneza ao leste da bota que é o mapa da Itália. É difícil imaginar que, poucos quilômetros daqui, se ergue a colina onde está a Bérgamo alta, uma das cidades medievais mais belas do mundo. Aqui, na praça de uma paróquia de periferia, quatro padres ainda jovens (entre 40 e 50 anos) decidiram viver esse ano uma Quaresma diferente. Emanuel, Alessandro, Andréa e Gianluca são párocos em pequenas paróquias daqui onde os migrantes chegam e se amontoam como podem. Há anos, eles tentam trabalhar juntos e em uma linha comum. E colocaram os mais pobres e frágeis como centro de sua atenção pastoral. Desenvolveram um trabalho de mediação de conflitos nas escolas da região e acompanham famílias que pedem essa mediação e diálogo. Esse ano, na Quaresma, decidiram fazer um gesto diferente que mexesse um pouco com o povo mais tradicional de suas paróquias: armaram diante de uma das Igrejas (na praça) uma tenda de lona, puseram uma mesa com cadeiras e quatro colchões no chão de cimento da praça e estão os quatro acampados ali desde a quarta feira de cinzas.
A tenda de lona é bem melhor do que as barracas de plástico preto de nossos irmãos sem-terra no Brasil. Mas, aqui nesse inverno de cinco ou seis graus (e à noite, baixa a zero ou menos), eu seria incapaz de passar uma noite nessa tenda.
Nem preciso perguntar. Eles fizeram isso para chamar a atenção dos italianos bem acomodados de suas paróquias para a realidade dos migrantes africanos e asiáticos que vivem assim ao lado das casas boas dos italianos, mas são invisíveis. Os europeus passam por eles como se não existissem. A não ser para a polícia de migração que os persegue ou os patrões que os buscam para trabalhar a noite inteira a carregar e descarregar os produtos do comércio ganhando quase nada (dez euros por noite de trabalho).
Dizem que uma vez, a FAO (Organização da ONU contra a fome) convidou a Madre Teresa de Calcutá para falar sobre a fome no auditório da FAO em Roma. Ela respondeu:- Irei com uma condição: todos vocês funcionários da FAO que me escutarão, antes da conferência devem ficar um dia sem comer. E aí conversaremos.
É claro que ela foi imediatamente desconvidada. Esse gesto dos padres de passar essa Quaresma nessa tenda é uma iniciativa da mesma linha profética. Convida as pessoas a se colocarem no lugar dos que sofrem.
Um companheiro padre perguntou: Até quando? Emanuel respondeu: Ao menos até a Páscoa. Depois veremos como prosseguir...
Passei essa tarde e começo de noite com eles na tenda. O nariz corre e sinto que devo me cobrir mais para continuar aqui. Tivemos uma longa conversa de duas horas. Um deles (Andréa) não está porque nesse momento está visitando famílias de migrantes e dando alguma assistência humana a pessoas doentes. Sinto-os contentes pelo gesto profético que tiveram a coragem de fazer. Mas, o jornal da diocese os critica abertamente em um artigo que farei questão de responder e contestar. O artigo da Cúria diz que o gesto é belo como intenção mas mostra um protagonismo pessoal não acompanhado pelas comunidades e que no fundo eles querem se mostrar. É pena que muitos homens que se dizem pastores da Igreja possam ser tão mesquinhos. E pelo fato de não terem coragem de fazer gestos ousados, condenem quem os faz. O artigo os critica por terem feito isso sem que as comunidades tivessem aprovado. Provavelmente esses padres da Cúria acham que Jesus fez primeiro uma votação entre os apóstolos e amigos para depois decidir comer com pecadores e gente de má vida ou perdoar a mulher adúltera que os religiosos da época queriam apedrejar. Graças a Deus, hoje, esses padres profetas não correm o risco de serem apedrejados, ao menos fisicamente. Fizemos juntos uma boa reflexão bíblica. Só pelo fato de vir aqui e poder apoiá-los nessa iniciativa, já sinto que vale a pena correr como corri, fazer uma viagem de mais de 24 horas, passar dos 30 graus do Recife aos seis ou cinco graus dessa região nesse fevereiro nebuloso da Itália e sim viver o cansaço de esperar pacientemente por tempos melhores para a Igreja e para o mundo.