Queridos irmãos e irmãs,
Ontem, celebrei na Igreja das Fronteiras que foi a casa do nosso mestre Dom Hélder Câmara pelo aniversário de um ano da partida do grande bispo e amigo Dom Clemente Isnard. O padre José Romero e o bispo anglicano Dom Sebastião Soares publicaram ontem um livro que recolhe escritos de Dom Clemente. Foi uma celebração bonita e profunda. Eu tinha vindo do colégio marista de Apipucos onde participei de uma vídeo-conferência sobre a mística da ação social. O que eu disse foi mais ou menos isso:
"A ação social é a presença efetiva e visível da Igreja de Cristo no mundo. Quando a Igreja ou a fé cristã aparece em uma procissão ou em uma missa show, aparece em algo que não é sua essência fundamental, é um elemento que pode até ser importante, mas não é o eixo da fé. O eixo da fé é o amor. Entretanto, é importante que haja uma força específica nessa ação social cristã que faça com que a ação social cristã tenha algo diferente de uma ação social de uma empresa do mundo capitalista. A gente gostaria de responder que a diferença é a mística ou a espiritualidade que todas têm, uma de um jeito, outra de outro, mas que a ação social de um grupo religioso expressa de forma específica. Vamos tentar compreender isso melhor:
Existem três tipos de ação social
Na Teologia da Libertação, desde os anos 80, nos habituamos a distinguir e até contrapor três tipos de ação social:
- Ações sociais de caráter assistencial
Nessas, a pessoa ou instituição que pratica a ação acolhe e ajuda os pobres, mas, em geral, esse tipo de ação revela algumas limitações. O pobre é visto como indivíduo, uma pessoa carente que deve ser ajudado em sua necessidade. Falta uma perspectiva coletiva, estrutural, para explicar as causas da pobreza e para combatê-las. Eles são considerados destinatários da ação social, e não são protagonistas ou sujeitos da ação.
Em determinados momentos e situações, a “assistência” é necessária: catástrofes, fragelos, doenças graves, deficiências/necessidades especiais físicas e mentais, fome crônica e desnutrição, velhice. A solidariedade como assistência apresenta o grave risco de se degenerar em assistencialismo.
* O que diferencia uma prática assistencial contextualizada de uma prática assistencialista é: - a consciência de que o pobre é um outro, com personalidade e história, - o horizonte do protagonismo possível (o que as pessoas devem assumir como sua responsabilidade).
Quando a assistência social se transforma em política pública, traz essa ambiguidade: assegura alguns direitos básicos aos fracos e supre temporariamente carências gritantes. Mas pode ser uma perigosa arma política de manipulação do povo. Especialmente se não estiver relacionada com práticas de autogestão e auto-organização dos setores populares.
– Ações sociais de tipo reformista
Enquanto as ações assistenciais são sempre de tipo emergencial, socorrem, mas não ajudam profundamente, as de tipo reformista chegam a educar, a elevar a situação social ou econômica da pessoa ou do grupo, mas sem romper com as causas que provocam a exclusão e sem partir da iniciativa ou protagonismo das pessoas em questão. Nas políticas públicas, são essas ações que até tiram pessoas da miséria, dão primeiro emprego, criam bolsas de estudo para estudantes pobres ou cotas para minorias raciais, mas sem jamais tocar no sistema que provoca os males que essas categorias sofrem.
– Ações de caráter libertador
Nem preciso dizer que nesse processo libertador, o importante é partir do grupo oprimido, da organização dos excluídos que são sujeitos e protagonistas de sua ação e aí o papel da instituição que promove a ação é apoiar, assessorar e justamente garantir a mística da ação.
É claro que não se podem dividir linearmente esses três tipos de ação, como se eles não se entremeassem. Ao contrário, no dia a dia da vida e na realidade de nossas ações, muitas vezes, eles se confundem e têm elementos que são ao mesmo tempo de um e de outro tipo. As vezes até dos três na mesma ação e inspiração. O importante é manter certo critério e analisar se estamos respeitando o protagonismo das pessoas que tentamos ajudar, se as tratamos como grupo e não apenas individualmente e assim por diante. A realidade é sempre mais complexa e dialética. Não existem realidades estanques separadas. Elas não são assim. Mas, é bom dar uma olhada nas nossas ações e ver se possível o que elas têm mais de um ou de outro desses três tipos.
– A questão mesma da mística
A mística é o segredo mais íntimo que está por trás de nossa vida e nossa ação. A raiz de nossas motivações mais profundas e o porquê de nossas opções. A mística cristã é o amor solidário. A nossa ação social e nossa relação com as pessoas se tornam assim expressão de que como dizia Paulo: “já não sou eu que vivo. É Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20). Assim como em várias religiões existem transes e possessões nos quais a pessoa é tomada por um espírito, a mística cristã é deixar-se tomar por Deus de tal forma que é ele que ama e age em nós, em decorrência desse amor. Se nós recebemos o Espírito de Jesus, nossa ação social é sempre testemunho do reinado divino no mundo. Muitas vezes, pessoas e grupos de pastoral popular e de cristianismo libertador falam em “construir o reino de Deus”. Jung Mo Sung critica essa noção como sendo imprópria. O reino é de Deus, é graça e não somos nós que o construímos. Além disso, temos sempre que distinguir os regimes e sistemas humanos e isso que chamamos de reinado divino. Não podemos nem sacralizar um sistema social como se fosse já o reino ou um pedaço do reino e nem também separar de tal modo uma coisa da outra que o reino fique restrito à escatologia. Temos sim que ensaiar e dar sinais antecipadores do reinado divino que começa em nossa história, principalmente, em novas relações de solidariedade entre nós. Essa mística influencia no modo de praticar a economia, a política, a educação, tudo... Sempre com a lucidez de distinguir o que é provisório daqui e o que é do reino e, por outro lado, vivendo o que Jesus nos ensinou a orar: “venha a nós – portanto, venha para cá para esse mundo o teu reinado divino”.
Se queremos que a mística não seja apenas uma roupa para vestir a nossa ação social, mas seja como algo intrínseco e essencial a ela, temos que nos definir e lutar para superar
uma espiritualidade patriarcal
uma espiritualidade sacrificial
uma espiritualidade dualista e que divide a realidade em natural e sobrenatural.
Até hoje, na maioria dos ambientes eclesiásticos, a espiritualidade dominante ainda é muito patriarcal e machista. Isso tem decorrências terríveis e a ação social decorrente dela dificilmente será igualitária e libertadora.
A espiritualidade sacrificial foi útil para o mundo antigo. Expressava a fé na linguagem comum às culturas antigas. Hoje ninguém pode imaginar um pai amoroso que precisa que seu filho morra para ele, o pai, poder se reconciliar com a humanidade. Os evangelhos têm uma espiritualidade de alegria, de festa, de gratuidade. E os cristãos transformaram o evangelho em uma doutrina de sacrifícios, mortificações e luta contra o pecado. A ação social em uma espiritualidade sacrificial tem uma mística. Em uma espiritualidade de festa e amor gratuito tem outra.
Finalmente, superar a espiritualidade dualista é fundamental para dizer que quando ajudamos os pobres, nós somos ajudados por eles e nós estamos restituindo a eles o que lhes pertence por direito.
Tanto para quem pertence a uma Igreja ou tradição espiritual como para quem não tem nenhuma pertença religiosa, a ação social nossa pode ser vivida como um caminho místico e de intimidade com Deus. O compromisso amoroso e solidário com a comunidade dos empobrecidos é um modo de deixar-se conduzir pelo Espírito que “sopra onde quer; ouve-se a sua voz, mas não se sabe para onde vai nem de onde vem” (Jo 3, 8).