Hoje, reparto com vocês uma nota escrita por meu irmão e amigo Luiz Alberto Gomez de Souza com a qual concordo inteiramente e assino embaixo junto com ele e todos os cristãos indignados com esse modelo de Igreja:
Uma nota da arquidiocese do Rio de Janeiro em contradição com os tempos de Francisco.
Luiz Alberto Gómez de Souza,
Cristão leigo.
Estamos às vésperas de eleger um prefeito para o Rio de Janeiro. Dois candidatos se enfrentam. O importante é ver qual dos programas serve melhor ao bem comum da cidade. Nesse sentido, algumas centenas de cidadãos, membros de várias religiões (incluídos evangélicos), nos posicionamos publicamente pela candidatura Freixo. O mesmo fizeram sacerdotes e uma religiosa, usando de seus direitos de cidadãos, apoiados por centenas de agentes de pastoral católica. Estes últimos declararam: a candidatura de Freixo “é a que mais sintoniza com a construção de uma cidade mais justa, fraterna e igualitária”. E o fizemos todos num tempo de Francisco, que exige uma Igreja “em saída”, acolhedora, com os princípios evangélicos básicos da misericórdia, da justiça e do bem comum. A candidatura Freixo, para todos nós, é a que melhor se enquadra nessa orientação.
Dia 19 deste mês, a Comissão Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz, da Conferência dos Bispos, divulgou nota, preocupada com um cenário de retrocesso dos direitos sociais em curso no país. E concretamente se referia à emenda constitucional 241/2016, aprovada na Câmara. Ali declarava: “Em sintonia com a Doutrina Social da Igreja Católica não se pode equilibrar as contas cortando os investimentos nos setores públicos que atendem aos mais pobres de nossa nação. Não é justo que os pobres paguem essas contas...”. No começo de novembro terá lugar em Roma o terceiro encontro internacional de movimentos populares onde, num certo momento, se encontrarão com Francisco. E ali se criticará, como nos encontros anteriores, uma política neo-liberal de desmonte dos avanços da inclusão social.
Nesse contexto eclesial em renovação, uma recente declaração do bispo do Rio de Janeiro entra na contramão, com rara infelicidade. Desautoriza a opção livre de cristãos adultos, clérigos ou leigos, não importa, todos cidadãos, de apoio a Freixo. Começa afirmando que a posição da arquidiocese é “apartidária”, deixando assim aparentemente livre a opção dos cristãos. Mas logo adiante dá uma marcha atrás, num tom que nos remete a uma postura pré-conciliar e aos tempos, felizmente ultrapassados, da Liga Eleitoral Católica (LEC), dos anos trinta e quarenta do século passado, que vetava candidatos. E a nota indica que os cristãos somente poderão votar em candidatos que estiverem “em comunhão com os princípios humano-cristãos”. Esclarece o veto aos favoráveis ao aborto, à eutanásia, a união de pessoas do mesmo sexo e ao divórcio. É incrível a fixação, em certos setores eclesiásticos, com os problemas da sexualidade e da reprodução, como centrais na doutrina, em detrimento de outros citados acima, da justiça e da misericórdia. Aliás, isso ocorre numa eleição para prefeito, poder local de exercício muito concreto e não para legisladores, que poderiam apoiar ou mudar as leis. E curiosamente, o texto fala de princípios cristãos e humanos. Os primeiros obrigariam aos membros da comunidade eclesial. Os segundos se baseariam num direito natural, obrigatório a todos. Numa sociedade laica como a nossa, quem determinaria os princípios humanos? Em tempos de cristandade a Igreja tentou fazê-lo. Numa sociedade plural, isso ficaria ao critério da consciência dos cidadãos. Mas, além disso, sabemos que a ideia de um direito natural imutável há muito tempo foi posta em escanteio pela modernidade. E os mesmos princípios cristãos, como indicou já no século XIX o cardeal Newman, estão sujeitos ao desenvolvimento da doutrina e vão sendo revistos, apesar de resistências, num magistério dos tempos de Francisco que se renova por novas práticas e vai abrindo caminho a outras prioridades.
Esses princípios tradicionais são lembrados no texto para insinuar, sibilinamente, que um dos candidatos, no caso Freixo, não os seguiria. Isso já tinha sido feito na eleição de Dilma, em 2010, quando um bispo de São Paulo indicou não ser possível votar na candidata, por provável, não provada, aceitação do aborto. Em reação, fizemos um manifesto de cristãos evangélicos e católicos em apoio a Dilma, com centenas de assinaturas, incluindo alguns bispos e pastores evangélicos e seguido pela Cáritas Brasileira, órgão da CNBB. Tive a ocasião de ler o manifesto num grande encontro, na Casa Grande, na presença de Dilma. Essas insinuações voltariam na eleição para o Senado em que Jandira Feghali foi derrotada pelo candidato conservador do PP, o atual governador em exercício.
Trocando em miúdos, o texto da arquidiocese parece dizer: o magistério, acima das miudezas das políticas concretas, quer ficar aparte e acima. Começa então dizendo que não opta entre A e B, para logo adiante indicar, indiretamente, que não é possível votar em B. Argumentação contraditória e capciosa, própria de certas firulas eclesiásticas que a Igreja de Francisco vai colocando de lado.
Tenho recebido telefonemas de católicos perturbados com a nota. Eu lhes respondo que minha posição é de indignação. E quero exercer a liberdade de leigo cristão filho de Deus, seguindo minha consciência e não uma orientação que julgo parcial e preconceituosa. Direito ao protesto e à desobediência adulta.
O blog de Marcelo Auler informa que um sacerdote, no facebook, disse que a Igreja vivera dias difíceis até Crivella afirmar por escrito, seu compromisso com a Igreja Católica e seus princípios (aqueles da nota, não os da misericórdia e da justiça). Critica os que chama católicos de esquerda (como se isso, para ele, fosse compatível), pedindo para esses católicos as sanções do Código de Direito Canônico. E apoia então abertamente Crivella. Sem comentários.
Mas há outro ponto que não sei como não foi percebido pela autoridade católica carioca. O bispo Crivella deixou as atividades missionárias, como ele informou, por orientação (ou ordem), de seu tio, o bispo Macedo da Igreja Universal, para dedicar-se a tarefas políticas. Ora, a ninguém escapa que há uma estratégia de setores neo-pentecostais fundamentalistas (e o denunciam outros evangélicos), para galgar postos no poder político, e chegar a eleger um neo-pentecostal na presidência. O problema não é ter um presidente evangélico, ou espírita, ou agnóstico ou de outras orientações religiosas. Tivemos católicos nominais, devotos em tempos de eleições com direito a peregrinação a Aparecida. O receio é que aqui, como nos Estados Unidos, e em certos países de fundamentalismo árabe, possamos chegar a governos confessionais, com princípios rígidos e intolerantes. Católicos que com entusiasmo votarão em Crivella, e autoridades que estão por trás, se darão realmente conta do perigo de uma certa involução que pode pôr em perigo um estado laico e plural? A Igreja Católica teria certamente problemas em suas pastorais sociais e, principalmente os cultos afro, considerados pela Igreja Universal como coisas do demônio.