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Conversa, segunda feira, 01 de outubro 2012

Hoje, vivo o último dia na Europa. Passo em Lisboa que sempre me parece tanto com Salvador e mesmo com o Recife antigo, embora este já esteja tão deteriorado e ferido pela ambição das construtoras. Amanhã volto a Recife e terei uma semana cheia, inclusive devo decidir se aceito ou não o convite do governo da Venezuela para ser observador internacional nas eleições presidenciais do domingo próximo lá em Caracas. Tenho alguns exames de saúde urgentes a fazer e não sei se meu médico Dr. Lurildo me libera. Vamos ver. 

Hoje acabei a revisão do meu livro já escrito há tempos: Evangelho e instituição. Concluí o livro e por cuidados pastorais (não medo ou política diplomática), mas para continuar trabalhando com as comunidades, preferi não publicar. Mas, agora, a memória do meu mestre José Comblin me toca e é como se estivesse me chamando a publicar e correr riscos. Ainda não decidi. Na Itália saiu o meu livro - O Evangelho que liberta - comentário ecumênico ao evangelho de Lucas - livro que não está publicado no Brasil e até hoje nem as Vozes nesm outra editora me deram sinal positivo que aceitam publicar, embora eu tenha mandado o livro já há mais de um ano. 

Houve na Itália um congresso sobre diálogo inter-religioso e o tema do congresso era provocante: "E se Deus rejeita a religião?". Uma editora católica (a Cittadella) publicou em um livro as principais conferencias e discussões que aconteceram durante o congresso. Fiquei impressionado com a conferência do padre Alberto Maggi, biblista que conheço e é professor de Bíblia em Roma. Hoje em dia no Brasil não sei se algum teólogo católico fora o padre Comblin que  está morto e Leonardo Boff que está posto à margem, teria liberdade de falar como ele falou. Diante de bispos e padres, teólogos e gente de várias religiões, ele disse palavras que traduzi e reproduzo aqui. 

Alberto Maggi fez sua primeira palestra com o título: “A blasfêmia contra o Filho do Homem” (Mt 9, 3).

Eis a primeira parte de sua conferência:

“A primeira coisa que devemos fazer é distinguir religião e espiritualidade. A espiritualidade nasce do mais íntimo do ser humano. É a força interior que o impulsiona para o infinito, o absoluto. Em cada criatura, é o desejo inato de plenitude da vida. É o que leva a pessoa a viver a imagem e semelhança de Deus e ser como “imagem e glória de Deus” (1 Cor 11, 7). No específico cristão, a espiritualidade leva à fé.

A religião é uma coisa cultural. Um instrumento que nasceu para desenvolver a espiritualidade, mas na realidade a oprime e a sufoca, porque, por natureza, toda religião é violenta.

A diferença entre religião e espiritualidade ou fé é que enquanto a religião nasce do humano e se dirige para a divindade, a espiritualidade nasce de Deus e se dirige ao ser humano. “Não fomos nós a amar a Deus, mas ele nos amou primeiro” (1 Jo 4, 10). Enquanto a religião se preocupa do que o ser humano faz para Deus, a espiritualidade cuida do que Deus faz para o ser humano. Na religião, o sagrado é o livro. Na espiritualidade, o sagrado é o ser humano (Mc 2, 27). Na religião, o importante é o sacrifício. Na espiritualidade é o amor (Cf. Mt 9, 13). As cruzadas nascem da religião, não da espiritualidade. Por isso, é ilusório pensar que as religiões possam trazer paz à humanidade. As religiões são violentas por natureza. Toda religião tem a pretensão de ser a única absoluta revelação da divindade, a partir da qual reivindica a posse de um texto sagrado, revelado, comunicado e escrito diretamente por Deus. Essa escritura sagrada, tida como expressão definitiva da vontade de Deus, dá o direito à religião de dividir as pessoas em fiéis e infiéis, entre puros e impuros, de prometer um prêmio e ameaçar um castigo e de propor diversos tipos de violência moral, psicológica e se a lei civil permitir, até física. Cada religião tem a pretensão de ter exclusividade sobre a fraternidade e a paz. Pensa também que o mal e Satanás estão ligados a outras religiões, filosofias e sistemas de poder. A história nos ensina que em nome das religiões, os homens se organizaram uns contra os outros. Mataram e massacraram uns aos outros, cada grupo em nome do seu deus. É bom não esquecer que o Cristianismo foi a religião mais homicida que jamais apareceu na história. É triste admitir isso, mas nenhuma religião tem tantos mortos na sua consciência quanto o Cristianismo. Desde o seu início, a violência foi uma constante na história da Igreja. Para impor a religião cristã aos outros, os papas mataram mais pessoas do que os imperadores para se opor à religião. A violência da Igreja não se voltou só contra os infiéis, judeus e muçulmanos, mas contra os próprios cristãos. Estes eram os considerados hereges, que foram queimados vivos, esquartejados e cozinhados, as bruxas que foram torturadas e enforcadas ou queimadas em praça pública e também as pessoas que simplesmente não se submetiam completamente ao poder dos papas e dos bispos. E tudo isso em nome de Cristo. Em nome de Cristo, populações inteiras foram massacradas e canceladas da face da terra. Basta pensar nos Aztecas e Mayas, só para lembrar os mais conhecidos. Outras foram poupadas porque tiveram canceladas as suas culturas, sua história própria e suas tradições. Bartolomeu de las Casas, na sua Brevissima relação sobre a destruição das Indias, escreve páginas terríveis. Ele era capelão dos ocupantes, mas mudou de posição em relação à conquista e à evangelização, quando, em Cuba, foi testemunha do cruel suplício a que foi submetido Hatuei, o chefe da resistência dos índios. Condenado como herege e rebelde, ele foi queimado vivo. (...) O poder exercitado em nome de Deus é o mais perverso de todos os poderes porque convence as pessoas a submeter-se a seus representantes como único caminho de salvação. Isso torna as pessoas não somente escravas, mas também cúmplices da escravidão aceita e assumida como valor.

Os evangelhos mostram que Jesus, manifestação visível de Deus entre nós, teve sempre uma relação fortemente conflituosa com tudo o que diz respeito à religião: as leis, as pessoas e os lugares de culto. No tempo de Jesus, religião era tudo o que as pessoas deviam fazer para obter a benevolência divina. Tudo isso não tem valor para Jesus. Jesus propõe uma relação nova com Deus, não mais baseada no que o homem deve fazer para Deus, mas na acolhida do que Deus faz por nós. Com Jesus, acabou a religião e começou a fé. (...) Nos Evangelhos, o mundo das religiões e as pessoas religiosas são apresentadas como refratários à ação do Espírito, adversários do projeto de Deus sobre a humanidade e, portanto, inimigos declarados de Jesus”[1]. 


[1] - ALBERTO MAGGI, La bestemmia del figlio dell´uomo, in AUTORII VARII, E se Dio rifiuta la religione?, Assisi, Cittadella, 2005, pp. 57- 61. 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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