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Conversa, sexta feira, 01 de novembro 2013

Nessa noite, em vários lugares do continente, as pessoas recordam seus entes queridos já falecidos. Nossa sociedade tem medo de falar da morte e disfarça como pode a experiência da morte. De fato, a morte, enquanto minha, é uma experiência impensável. Epicuro dizia que se eu existo, a morte não existe. Se a morte acontece, eu não existo mais. Então, eu não posso fazer a experiência da morte. Mas, a faço quando experimento a morte de uma pessoa que amo. Kant escreveu: “Quanto à morte, ninguém pode experimenta-la por si mesmo, mas só a apreende na morte do outro". O medo de morrer não é medo da morte mas medo de ser morto. 

As tradições religiosas revelam que a vida não é  penas biológica, nem a morte é mero acidente de percurso. Como diz a Bíblia: “Para todas as coisas, há o momento certo. Existe o tempo de nascer e o tempo de morrer”(Ecl 3). Rubem Alves compara a vida com uma sinfonia na qual a morte é o último acorde.  Como se a morte dissesse: “É pena, mas está completo. Para que seja belo, é preciso que agora acabe”.  

A sociedade urbanizada não consegue viver de forma  integrada a comunhão com seus falecidos. Muitos não vêem mais sentido em ir ao cemitério ou a um velório. Nas culturas antigas, velava-se o defunto em casa, em um cerimonial de convivência. As pessoas cantavam. Havia comidas próprias para os que passavam a noite. Atualmente, paga-se uma capela de cemitério e reduz-se o velório ao tempo mínimo. A morte é disfarçada. É um assunto que se evita. Essa dificuldade de lidar com a morte de um modo digno já aparece no fato de que a ciência finge que controla a vida. A morte parece reduzida a um acidente fatal. Ninguém mais morre “naturalmente”. Ou aparece uma doença traiçoeira, ou acontece um acidente fatal. 

Quando a vida é desumanizada, a morte também perde o seu sentido, a sua sacralidade. A sociedade desenvolve um culto ao corpo e à beleza física. As pessoas são educadas a fechar-se em si mesmas, despreparadas para enfrentar a morte dos outros e a sua própria. A sociedade gosta tanto da literatura e do filme de fantasma e vampiro porque sente confusão diante da morte, mistura mortos e vivos. Como se o ideal de todos fosse “morrer velhos, mas esbeltos”. De fato, a morte humaniza a vida porque revela que somos criaturas limitadas. Educar nossos filhos fugindo da questão da morte não os ajuda a assumir os próprios limites e os dos outros. Como não levam a sério a morte, as pessoas são facilmente empurradas para a violência e o desrespeito à vida. Cada vez mais, como dizia Guimarães Rosa:  “viver é muito perigoso”. 

As religiões e culturas tradicionais têm uma importante função: revelar que Deus nos criou para a vida e uma vida digna e plena. Agrada a Deus quem defende a vida em todos os aspectos e dimensões: a vida própria, a dos outros e a do universo. Lutar pela vida, contra a dor e a destruição inclui a sabedoria de acolher a irmã morte quando, de algum modo, ela nos vem. Se cremos em Deus, temos confiança de que  morte não é o fim. Se não, a morte seria deus e o amor de Deus não valeria nada. A morte continua sendo sempre uma tragédia. Mas, as religiões vêem caminhos para além da morte. Muitos creem na reencarnação. Os cristãos proclamam a ressurreição. Esta esperança muda a forma de encarar a morte. 

A maneira como a sociedade se organiza diante da morte está estreitamente ligada ao modo como ela organiza a vida. Na sociedade ocidental, diante de um morto a gente pensa: “De que morreu?”. Nas sociedades tradicionais, a pergunta é “Por que morreu?”. Através dela, o grupo se põe a questão da sua responsabilidade, expressa o sentimento de culpa. Viver e morrer não são atos vividos no isolamento. 

De fato,  o espírito é sempre encarnado e o corpo sempre espiritualizado. A morte é a cisão entre um tipo de corporalidade limitado, biológico, restrito a um pedaço do mundo, isto é, nosso corpo e outro tipo de corporalidade em relação à matéria, ilimitado, aberto, pancósmico que corresponde ao novo modo de ser em que entra o homem após a morte, a eternidade. 

Nos Evangelhos, Jesus sofre quando pressente que vai ser morto. A morte é inimiga do ser humano e a ela tudo está submetido. A carta aos hebreus diz que Jesus elevou orações e súplicas com lágrimas Àquele que o podia salvar da morte (5, 7). Morre dando um grande grito.    “A morte é o último inimigo a ser reduzido ao nada por Deus” (1 Cor 15, 26). Deus não substitui o velho pelo novo. Ele faz do velho o novo. A ressurreição é uma forma de estar com Cristo. 

Antes de ser assassinado, Dom Oscar Romero, arcebispo de El Salvador, disse: “Estou ameaçado de morte. Como cristão, não creio na morte sem ressurreição. Se me matam, ressuscitarei no meu povo… Sinto-me obrigado a dar a vida por quem amo que são todos os salvadorenhos, inclusive aqueles que vão me assassinar… Que meu sangue seja semente de libertação e sinal de que a esperança será, em breve, realidade”.

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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