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Conversa, terça feira, 17 de fevereiro 2015

Nessa noite, em Campina Grande, PB, encerra-se o 24o Encontro da Nova Consciência. Há 24 anos, durante o Carnaval, esse encontro reúne centenas de pessoas (os primeiros reuniam milhares), gente das mais diversas tradições religiosas e espirituais, além de muita gente, principalmente jovens, em busca. E aqui, durante quatro dias, as pessoas se reúnem, dialogam, debatem, refletem... Cada ano, um tema geral busca reunir as diversas tradições. Nesse ano, o tema foi "Desafios para um futuro possível". Tive o encargo de fazer a palestra inicial que abria o encontro e dava a esse dias uma pista a seguir. Eis o que falei: 

Desafios para um futuro possível

Neste ano, o tema do 24° Encontro da Nova Consciência é muito abrangente e vai envolver a todos nós. Não penso que seja coincidência que, de certo modo, esse encontro tenha o mesmo tema do 12° Fórum Social Mundial, no próximo mês, na Tunísia, no norte da África. E, sem dúvida, os desafios para um futuro novo para o planeta Terra  é a grande preocupação da 17a Assembleia Internacional da ONU sobre mudanças climáticas que está sendo encerrada agora nessa tarde, em Dubai.

É claro que o Encontro da Nova Consciência trata desse tema a partir de um ângulo próprio e de uma sensibilidade que é a busca espiritual que faz com que todos nós tenhamos saído de nossas casas para nos reunir aqui nesses dias. A conferência dos governos sobre o clima, a gente já sabe que não terá maiores consequências. As transformações profundas que esperamos para o mundo não virão das cúpulas e menos ainda das grandes potências que são as que mais poluem e as que menos têm interesse em mudar os caminhos da sociedade. O Fórum Social Mundial, sim, reúne cidadãos do mundo inteiro que formam a parte mais consciente da sociedade civil internacional – movimentos sociais, educadores e organizações ecológicas, todo mundo que trabalha por um novo mundo possível... É bom que nós nos sintamos ligados a eles, mas lá o leque é muito amplo e nós aqui podemos ser mais precisos e focados.

Quando falamos em futuro, precisamos esclarecer. O termo futuro vem do latim antigo e significa “aquilo que virá”, “o que está na frente”. Mas, a gente só pode projetar o futuro a partir do passado e do presente. O futuro é o amanhã que o presente nos permite pensar... E aí há vários modos de pensar o futuro e de falar sobre isso. O próprio governo Lula criou uma tal de “Secretaria de planejamento de longo prazo”, que hoje se chama “Secretaria de assuntos estratégicos”. Nessa visão, o futuro é mero decorrer ou continuidade do que planejamos no presente. Quando alguém olha o céu e diz: “vai chover”, o futuro próximo é lido a partir do presente. Quando alguém vê o desmatamento generalizado que ocorre no Brasil, sabe que o sistema do cerrado brasileiro já está destruído e dificilmente será recomposto e constata que o governo brasileiro continua apostando no agronegócio e no capitalismo depredador da natureza não pode ver o futuro com otimismo ou confiança. Essa realidade triste que vivemos no ponto de vista ecológico no Brasil só pode gerar um futuro sombrio... Se falamos aqui de um futuro possível, é porque fazemos uma distinção entre previsão e profecia.

 A previsão é neutra e por mais correta que seja está presa ao que aparece na realidade. A pessoa pre-vê o que já está ali aparecendo ou nas linhas da mão, ou nas cartas, ou nos astros e assim por diante... Agora a profecia dá um passo em frente. Profecia não é apenas previsão. Tem a ver com promessa e promessa na sua etimologia latina está ligada a compromisso... A promessa acarreta o compromisso pessoal de quem promete. E geralmente, a promessa é sempre em uma linha transformadora da realidade. Lembram do Pequeno Príncipe que dizia não ter sentido prometer que amanhã o sol vai nascer ou que a noite vai escurecer, porque isso acontece sem promessas. Se eu prometer que amanhã pela manhã vai cair neve em Campina Grande, vocês vão achar que estou louco ou sou um mentiroso incorrigível. Mas, a promessa é  mesmo utópica. É o padre Cícero Romão Batista profetizando que um dia “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão” ou o profeta Isaías na Bíblia anunciando que o deserto vai virar jardim ou que o leão e a onça vão pastar junto com o boi e o jumento e todas as armas de guerra serão destruídas e transformadas em instrumentos agrícolas.

Levei um susto quando descobri que no hebraico bíblico, o termo futuro lifne diz respeito ao que ficou para trás e o termo aharon, passado, significa o que está na frente. Parece contraditório. Depois descobri que não é. De fato, para quem defende alimentos transgênicos, venenos agrícolas e o agronegócio, quem luta pela agricultura familiar e ecológica, é atrasado, ficou para trás, não evoluiu, não está no progresso. Mas, de fato, para quem tem juízo esse é o futuro correto, é o futuro que queremos. Então, um é o futuro que nos é imposto e outro é o futuro que podemos desejar. É o futuro possível. Para o povo da Bíblia, o progresso da civilizações mais avançadas como eram o Egito, a Babilônia, os cananeus, não seriam o futuro desejado para o povo de Deus. O futuro que eles desejavam era retomar o Êxodo, a libertação e atualizar o projeto de um povo livre em uma terra livre.

É claro que para pensar em um futuro possível assim, é preciso crer e é preciso ter um projeto claro. A Bíblia, o Corão e de certa forma as tradições religiosas antigas têm por trás um projeto divino para o mundo e para as pessoas e quando a gente aprofunda a fé, a gente descobre que deve estar a serviço desse projeto que os evangelhos chamam de “reino de Deus”  e por exemplo o Candomblé chama de “Axé”.

Agora é claro que essa promessa de um futuro novo possível tem desafios e desafios muito exigentes:

No mundo atual, o problema ecológico é urgente, urgentíssimo, muito mais grave e muito mais decisivo do que por exemplo a ameaça o terrorismo internacional. O terrorismo é um fenômeno terrível. Mas não destrói toda a vida do planeta. A crise ecológica provocada pela própria sociedade de consumo se não mudar o rumo da civilização tornará inviável a própria vida no planeta Terra. Então, isso é um desafio imenso para toda a humanidade.

Poderíamos falar dos desafios sociais e políticos que não são poucos, nem fáceis de se enfrentar. Mas, aqui eu preferiria ir direto aos desafios para os diversos caminhos e segmentos espirituais e religiosos. Há perguntas que nós não poderemos responder. São questões que se apresentam como desafios[1]:

1 – Será que cada pessoa vai agora organizar a sua religiosidade em um cenário pluralista e multiforme, do jeito que quiser, com menos doutrinas e com mais experiências emotivas?

Parece que quanto mais essa tendência aparece, mas as religiões têm a tendência de reforçar o seu dogmatismo e lutar por espaço político, defender moralismos e sob influência de poderes políticos, disputar o mercado cultural na televisão e na internet.

2  - Ou será, em um panorama, mais positivo, que os diversos caminhos espirituais e religiões vão convergir para uma espiritualidade ecológica e uma nova consciência não só individual e intimista, mas comunitária e social?

Nós esperamos que o Encontro da Nova Consciência nos ajude a nos colocarmos nesse caminho. Mas, isso exige de nós alguns cuidados e alguns princípios ou critérios...

Se esse tema geral ficar aqui na abertura e talvez como tema de algumas das grandes palestras durante as noites, mas os encontros paralelos e dos grupos que se reunirão em seminários e nos tantos encontros que se fazem durante o dia, se cada grupo, cada segmento estiver preocupado somente em se autopromover e vender sua mercadoria, nem mereceríamos o nome de “encontro da nova consciência”, quanto mais pensar que poderíamos colaborar para enfrentar os desafios de um futuro possível. Se entramos em um encontro da nova consciência e continuarmos apegados a qualquer dogmatismo religioso, cultural ou político, não nos abrimos ainda à nova consciência e nem aos desafios de um futuro possível. Encontro da nova consciência não é lugar para encontro de cristãos dogmáticos, nem muçulmanos dogmáticos, nem ateus dogmáticos... Uma nova consciência e a abertura a um futuro possível pede justamente de nós nos despojarmos de todo tipo de dogmatismo para dialogar e aprender a caminhar juntos na direção da paz, da justiça e da convivência fraterna de todos.

Então, para que possamos enfrentar os desafios de um futuro possível, eu gostaria de pedir três coisas, ou três cuidados a vocês:

1° – Vocês vieram aqui não para ficar presos e enclausurados cada um em seu próprio mundinho, cada grupo em seu próprio templo, mas ao contrário, para ir ao encontro do outro, para conviver, para aprender com o outro. Ninguém deveria vir aqui para se autopromover, para fazer publicidade do seu próprio grupo e sim para ouvir uma palavra que o Espírito Divino tem a me dizer através do outro, da outra tradição. Isso não quer dizer que não podemos encontrar o pessoal de nossa própria tradição, mas para nos abrir mais ao outro e não para nos fechar em nós mesmos. Eu mesmo celebrarei para as pessoas que desejarem uma espécie de eucaristia cristã no domingo pela manhã, mas justamente para nos dispor a uma abertura maior a todas as outras tradições e caminhos.

2° – O futuro da humanidade pede de nós a sabedoria de nem nos fecharmos no individualismo privativista do intimismo (eu e Deus e Deus e o meu coração) e nem perder de vista a dimensão da subjetividade. Precisamos viver essa dialética do social e da interioridade. Eu me sinto monge quando unifico em mim essas duas dimensões: uma educação social e política com o cuidado da interioridade espiritual.

Ken Wilber chama de “visão integral” esse processo que nos faz passar de um estágio egóico a uma fase etnocêntrica e finalmente a um modo de viver cosmocêntrico[2]. Esse caminho de convivência amorosa e baseada na cooperação e na solidariedade é a base espiritual da vivência e da defesa de todos os direitos humanos e cósmicos.

Justamente, só podemos nos dizer pessoas espirituais, se formos capazes de transcender a dimensão egóica da vida, ultrapassar também a etapa etnocêntrica do grupo, do clã, da nossa tribo e justamente chegar a viver a capacidade de um amor solidário universal e cósmico.

3° – O mundo de hoje está sedento e carente de esperança. As televisões só noticiam coisas ruins e só falam de corrupção e quem é educado pelos grandes meios de comunicação fica pensando que no Brasil todo mundo é corrupto, nas ruas só existe roubo e violência. As tradições espirituais teriam a função de apontar para a bondade fundamental do ser humano, dar o testemunho de que a maioria das pessoas, inclusive das pessoas públicas são honestas e corretas. Há muita coisa a mudar no próprio sistema brasileiro. Os movimentos sociais estão na campanha para uma reforma política do sistema brasileiro. Com isso temos de colaborar. Mas, é importante testemunhar a esperança, a confiança no futuro. Muita coisa está ruim, mas muita coisa melhorou. O olhar espiritual não pode ser conivente com o pessimismo, o amargor, o derrotismo... A gente tem de ser esperançoso e confiante. Não porque sejamos ingênuos ou bobos. A análise da realidade deve ser muito crítica e dura, mas o nosso olhar para um futuro novo possível vem da fé e do amor que temos à vida, da confiança que temos na humanidade e da capacidade de olhar que o Espírito Divino faz novas todas as coisas.

Na Bíblia, o salmo 104 canta assim:

“Quando tu, Senhor, teu Espírito envias,

todo mundo renasce, é grande a alegria” (bis).  


[1] - Agradeço ao professor Gilbraz Araújo, coordenador do curso de pós-graduação de Ciências da Religião da Universidade Católica de Pernambuco que formulou essas questões que aqui desenvolvo de forma adaptada.

[2] - Cf. KEN WILBER, The integral vision, em português: A visão integral, (Uma introdução à revolucionária abordagem integral da Vida, de Deus, do universo e de tudo mais), São Paulo, Ed. Cultrix, 2007, pp.33 ss..

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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