Crônicas desses dias em El Salvador
Quando se chega em San Salvador, a primeira coisa que se pode admirar é ver que o governo anterior (de Mauricio Funez) deu ao aeroporto internacional do país o nome de Monsenhor Oscar Romero. Mais do que apenas uma homenagem, isso significa que alguma coisa mudou desde 1980 quando ele foi assassinado. Naquele momento, ele tinha o amor carinhoso dos pobres do país, mas era odiado e caluniado de todas as formas pela elite e pela classe média. Mesmo padres e a maioria dos bispos do país falavam mal dele. Agora, o papa Francisco marcou o dia da canonização (reconhecimento da santidade dele). Ninguém mais fala mal, ao menos publicamente.
Cheguei na casa de hóspedes da UCA (Universidade Centro-americana) na terça feira à tarde. Aqui encontrei alguns brasileiros amigos. Com gente de toda a América Latina e Caribe, viemos para o 3º Congresso de Teologia promovido pela Amerindia. Dessa vez, para celebrar e atualizar a 2ª conferência dos bispos latino-americanos em Medellín, da qual se celebra nesses dias o cinquentenário (1968). A organização do encontro me pediu apenas para me encarregar de redigir junto com Tirsa Ventura, teóloga jovem da República Dominicana, a mensagem final do Congresso, a ser aprovada por todos/as os/as participantes. Além disso, devia ajudar em um dos conversatórios (que ocupava duas tardes) sobre Mística Libertadora.
Na quarta-feira, passei a manhã em casa, trabalhando em um texto urgente (o prefácio para um livro novo sobre o querido Pedro Casaldáliga). O livro “Um bispo contra todas as cercas”da jornalista Ana Helena Ribeiro Tavares sairá, em breve, pela editora Rocco.
À tarde, saí para caminhar pelo campus da UCA. Comecei pela Igreja da universidade que pertence aos jesuítas. Ali estão enterrados os seis jesuítas, assassinados por uma milícia da guarda nacional, na noite de 16 de novembro de 1989. Um ano antes, eu tinha me encontrado no Rio, com um deles, o padre Ignacio Ellacuría, na época, reitor da Universidade. Orei no pátio para onde os soldados levaram os seis e os fuzilaram com tiros na cabeça, provavelmente, para deixar claro que eles morreram porque pensavam coisas que não deviam pensar. Mataram também a duas mulheres, mãe e filha, que, naquela noite, dormiam na casa. O pátio onde eles caíram é hoje todo plantado de rosas e se chama de fato “Jardim de Rosas”. Orei frente aos túmulos dos mártires e sem poder me ajoelhar (com a perna ainda ferida da cirurgia do fêmur), me curvei ao atravessar o jardim das rosas vermelhas como sangue. A moça do serviço civil que servia de cicerone dizia o que significou aquele martírio dos professores para os jovens alunos que com eles conviviam diariamente.
Perambulei pelos caminhos da UCA, um verdadeiro bosque, quase uma floresta, de árvores tropicais. Aqui e ali, encontrava um esquilo e muitos pássaros que pela manhã e à tarde fazem um barulho enorme, mesmo para ouvidos pouco sensíveis como o meu (tomara meu Deus que eu mantenha mais sadio o meu ouvido interior).
O que buscava? Em princípio, livros. A biblioteca (para conhecer) ou a livraria para ser tentado a comprar algum livro de Teologia que no Brasil não encontramos. De fato, encontrei um que logo comprei: Entre ustedes, no sea así de Juan Hernandez Pico, amigo, jesuíta daqui. É sobre Política e Esperança na América Latina, um tema que quero aprofundar mais.
Saí da livraria e em que direção voltar para casa? Tantos caminhos no meio do bosque. Tentei encontrar o correto. Mesmo usando bengala, a perna incomoda. E de repente, não sei se não percebo um desses obstáculos de estacionamento e a dor na perna se faz mais intensa (graças a Deus, não caí). Vontade de parar, sentar na calçada e pedir socorro. Mas, o que iriam pensar de um brasileiro em missão se dou esse testemunho de moleza? A respiração mais intensa e consciente ajuda a dominar a dor. Vamos em frente. Mas, em que direção? Vejo uma senhora carregando um saco com coisas para vender. Tudo equilibrado na cabeça. Aproximei-me e perguntei como voltar à casa de hóspedes. Ela me apontou e me conduziu até que se visse ao longe a Igreja. E talvez pelo sotaque, me perguntou: Eres brasileño?
Respondi que sim. E imediatamente ela me disse: - Sabes, a esposa do nosso ex-presidente é brasileira. Ela fez muita coisa boa com a gente pobre. Fez muitos centros da mulher nos bairros de periferia. Visitava nossas comunidades e nos ajudou a lutar pela honra de nossas filhas. Agora, pobrezinha, está presa e acho que está doente, no hospital.
Imediatamente, me lembrei que tinha notícias dela na época em que era esposa do presidente. Perguntei: Como se chama ela? E a mulher me respondeu: - Vanda Pignati.
Volto para casa e me lembro de que Márcia Lopes, que foi ministra da Dilma (irmã de Gilberto Carvalho) tinha me falado dela. Havia mandado um zap para o meu grupo de celebração em Brasília. Paulo, um dos irmãos do grupo, me falou de Vanda e me perguntou se eu não poderia visita-la. Imediatamente mandei uma mensagem para Márcia e pedi a ela que me ajudasse a fazer o contato. No mesmo dia, recebi os telefones necessários e marcamos a visita para o sábado.
A quinta e a sexta foram tomados pelo congresso. Conteúdo bom, clima de fraternidade e bom entrosamento. Mais de 600 pessoas. Muitos/as jovens. Teólogos/as e gente de base das comunidades. Se fosse fazer uma crítica, teria de dizer que senti falta da dimensão ecumênica (havia vários evangélicos e pentecostais, mas meio anônimos e obrigados a conviver em ambiente bem católico). E também não se explicitou bem um conteúdo mais político da teologia da libertação. O social é muito claro. O político, seria bom clarear mais...
No sábado à tarde, depois de uma hora esperando que os policiais liberassem a visita no hospital público, pude entrar e passei uma hora com Vanda Pignati, advogada e militante social do PT que foi companheira do ex-presidente da República (Maurício Funez). Atualmente, ele está asilado na Nicarágua para não ser preso (diz que não há possibilidade de se defender). Ela ficou e pegou um câncer do qual está se tratando, no hospital público, mas com custódia... Acusada de haver comprado um carro particular com dinheiro público. Acusada sem provas e porque o Ministério Público diz que, embora não haja provas, há indícios e os juízes têm convicção. Certamente, vocês já ouviram antes essa história...
A visita foi rápida mas acho que a ajudou. E claro: sofre pelo que estamos vivendo e passando em nosso país. Conversamos muito e oramos juntos.
Vi pouco o país. Quase não pude sair, tanto por causa do pouco tempo, como por causa das minhas limitações de locomoção. Mesmo assim, senti a força da cultura maya em cada rua e em cada rosto. O próprio nome antigo do país era Cuzcaklan. E a cidade de San Salvador é rodeada de monumentos arqueológicos e sítios ainda pouco conhecidos. No entanto, toda a cidade é projetada ou melhor foi crescendo como um imenso arrabalde ou periferia de Miami ou Chicago. Tive a impressão de alguns condomínios de classe média e alguns outros de elite, cercados por uma imensidão de barracos e casas pobres, colocadas uma ao lado da outra do jeito que foi possível, em avenidas e ruas marcadas por comércio pobre e de vez em quando um shopping que no Brasil só se vê na Barra da Tijuca no Rio ou nos Estados Unidos.
Saio com uma pergunta: a ditadura militar acabou, a guerra passou, mas o país continua em primeiro lugar em todas as Américas se o assunto é violência urbana. Como isso é possível em meio a um povo tão hospitaleiro, simpático e mesmo carinhoso? Como a vida pode ser assim tão degradada? Como em todos os nossos países, a democracia formal não garante liberdade nem direitos humanos e a desilusão chega a ser tanta que as pessoas se vingam umas nas outras e jovens contra jovens, como se os companheiros de pobreza fossem culpados da opressão que vem de cima.
San Salvador me fez recordar a Venezuela dos anos 80 e 90, antes do presidente Chávez. Que Deus nos confirme no caminho do bolivarianismo que Chávez queria fazer e o Império impediu: a integração latino-americana, a libertação de todos os colonialismos e o caminhar para uma justiça econômica maior e portanto para um novo socialismo vivido a partir de uma democracia não só parlamentar, mas popular.