Blog Aqui vamos conversar, refletir e de certa forma conviver.

Cuidado com a esclerocardia

Cuidado com a Esclerocardia!

            Esclerocardia é exatamente o que constitui toda esclerose, entupimento das veias e impedimento da circulação. Só que se dá no coração (por isso o texto grego do evangelho chama de ‘cardia’

Penso que esse é o assunto fundamental e central da palavra de Jesus no evangelho lido pelas comunidades nesse 27º domingo do tempo comum (Ano B). Aparentemente, o texto de Marcos 10, 1- 16 parece uma discussão pouco atual e meio distante de nossa cultura urbana do século XXI. E se ficarmos na leitura fundamentalista ou ao pé da letra do texto, é mesmo. 

O texto conta que Jesus sai da Galileia e atravessa o Jordão para o território da Perea, na direção da Judeia (ele vai para Jerusalém, isso é, para a cruz). E ao sair da Galileia, já começa a enfrentar os adversários. O texto tem duas partes: na primeira é a discussão pública com os fariseus e a segunda é em casa (portanto, no ambiente de intimidade, na Igreja doméstica do tempo dos evangelhos), com os discípulos e discípulas que ele está formando. 

Lida ao pé da letra, a discussão provocada pelos fariseus é sobre o divórcio. Na realidade, não é, porque nem o divórcio era compreendido no sentido moderno do termo, (era simplesmente o direito do marido mandar a mulher embora. Era o repúdio da mulher feito pelo homem) e os fariseus já partem de que a lei de Moisés permite. Só queriam que Jesus se pronunciasse sobre a forma justa de fazer isso. A lei (Dt 24, 1- 4) já procurava defender o mais possível a mulher repudiada. Mas, é claro que o sistema era o patriarcado. A mulher, embora a lei lhe reconhecesse alguns direitos, era submissa ao homem e dependia dele.  Os fariseus querem saber o que Jesus pensa da lei e ele simplesmente responde: O projeto original de Deus é a união das pessoas e dos sexos. A separação foi uma concessão, uma permissão ocasional por causa da dureza do coração de vocês. A concessão não abole o espírito original da lei que é mais antiga do que Moisés. É da própria criação. “Moisés prescreveu isso por causa da dureza do coração de vocês – porque vocês sofrem de esclerocardia – endurecimento do coração – (e aí não se está falando do coração no sentido simplesmente fisiológico – biológico). Está se tratando do que há de mais profundo no interior do seu ser. Jesus se nega a tratar da lei e propõe que se volte ao projeto original de Deus: a igualdade fundamental entre homem e mulher, como entre quaisquer duas pessoas que se unem em uma união estável. Jesus se coloca contra a poligamia e ao falar contra a poligamia, investe contra o patriarcalismo. 

Em geral e quase sempre, as Igrejas leram esse texto de forma fundamentalista. Durante toda a história e até hoje, trocaram lei por lei. Apegaram-se ao fato de que em sua argumentação contra os fariseus, Jesus se coloca contra o direito do homem trocar de mulher quando achar a sua já gasta para o uso (isso era o tal repúdio ou mandar a mulher embora), além de se fixar na história de que casamento só pode ser entre homem e mulher. 

As Igrejas herdaram a lei contra o divórcio (o casamento é indissolúvel) e pouco se incomodaram com o espírito que está por trás da posição de Jesus: de fato, Jesus pouco entra na questão do casamento em si ou do divórcio, - inclusive no texto correspondente no evangelho de Mateus – cap. 19 – ele chega a abrir uma exceção quando diz que o homem pode despedir a mulher em caso de união ilícita (Mt 19, 9). Ao se fechar de modo fundamentalista e trocar a lei judaica por outra que seria cristã (e que como lei – isso é, estrutura jurídica normativa – nunca foi pensada nem querida por Jesus), as Igrejas traíram o pensamento original de Jesus que era pedir uma volta ao projeto original de Deus – o amor e a fidelidade do coração ao outro – e superar quanto antes possível o patriarcalismo que é o pecado original que está por trás de tudo – do repúdio à mulher e do sistema que oprime toda as relações sociais, inclusive na relação com os pequeninos – crianças e pessoas de condição inferior na sociedade – os pequeninos de Deus. 

Atualmente e mais do que nunca nesses dias em que essa campanha eleitoral mostra que grande parte dos que votam pelo candidato de extrema direita se dizem cristãos e votam porque seus pastores orientam assim – essa dureza de coração que o evangelho de hoje denuncia toma uma forma mais cruel e satânica de aprovar um projeto de violência e autoritarismo mais que patriarcal – escravocrata – em nome de um Cristofascismo que substituiu o discipulado de Jesus que é sempre “discipulado de iguais”. No entanto, ao denunciar um bispo neopentecostal que abençoa o candidato de extrema-direita e que a televisão mostra contra a própria lei eleitoral e nada se faz, o que está em jogo é mais do que isso. É como chegamos a esse ponto de trocar a mentira pela verdade e a injustiça pela justiça. Como chegamos a esse ponto de que o espírito do ódio e o demônio da violência saem para o mundo vindo de Igrejas, inclusive de paróquias e organizações da nossa Igreja Católica, sob a omissão cúmplice e culpada de muitos bispos e padres e mesmo do silêncio incompreensível e vergonhoso da conferência dos bispos. Parece que, como no tempo do Nazismo na Alemanha, está na hora de nos prepararmos para retomar o projeto do que na época se chamava de “Igreja confessante”, isso é, uma Igreja profética que toma posição sim e não tem medo nem pudor de se revelar anti-patriarcal, anti-escravagista e anti-direita. 

Recebi da amiga baiana, Débora Nunes, uma mensagem na qual, ela, da Europa, escreve: “No segundo turno vai ser possível mostrar com clareza infinita a diferença entre um democrata e bom gestor que é Haddad e a criatura insignificante e cruel que é o outro candidato. O processo do 2o. turno vai servir pra fazermos uma grande e linda união democrática e daremos passos importantes no governo Haddad, pois todos sabemos hoje o risco que a democracia corre, todo o tempo, nesses tempos escuros de fim de ciclo. Por favor, tenham calma e confiança, em nós, no povo, em nossa história brasileira. Para mim que estou numa terra que há milênios percebe como nossos sentimentos e pensamentos também estruturam a realidade, meu maior receio é que reforcemos os piores sentimentos que estão sendo estimulados nesse momento no Brasil com nossa própria ansiedade. Se há algo de novo no paradigma quântico, sistêmico, ecológico, é que o fenômeno "onda", não material, é parte tão determinante da realidade quanto a força da matéria. Os milhões investidos nas redes sociais pelos fascistas, a interferência da CIA, o acordo das elites e tudo o mais, precisam ser enfrentados a partir do coração (observação minha: cuidado com a esclerocardia). Rezem, se isso lhes faz entrar em contato com a inteligência maior e com a sabedoria do coração. Para acalmar a mente façam, por favor, também por mim, que não posso fazer, uma boca de urna como há décadas atrás, como quando vencemos a ditadura. Se apesar de todos os nossos esforços, o pior acontecer, isso será apenas um intervalo na História. Já vencemos tantas atrocidades...pagando caro, certamente, mas com o coração tranquilo de quem está do lado certo”. 

É isso, Débora. Vamos manter o coração aberto e amoroso no meio de um ambiente que convida ao endurecimento e à esclerocardia. 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

Informações