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De um leito de hospital

De um leito de hospital

                "Aguardei esperançoso o Eterno Amor

Sobre mim ele inclinou-se

e ouviu meu grito

Do chão que era uma fossa fatal ele me tirou,

Pôs meus pés em segurança sobre a pedra,

onde eu me firmo" (salmo 40, 1).

 Foi esse salmo que me veio ao coração ao dar por mim no chão de um banheiro fechado (na casa que me hospedava em Pordenone perto da meia noite de sexta-feira 17). A consciência vinha e voltava. Vi o degrau no qual havia tropeçado, compreendi o que tinha ocorrido. Não podia me mover. A cabeça zunia por causa da pancada na parede. Mas a dor maior era do lado em que caí, lado esquerdo, na bacia. Quando voltava a consciência, percebi que tinha de me levantar, abrir a porta, sair ao corredor e pedir socorro. O peso do escuro interior voltava e eu pensava: "Não posso desmaiar agora. Tenho de me manter acordado. Mesmo com dor, devo me mover". Dentro daquele banheiro fechado e sem poder me levantar, eu poderia passar a noite toda ou quem sabe enfrentar o pior. Reuni todas as forças, levantei-me, abri a porta, atravessei um corredor, para mim, naquele momento, longo e vazio e entrei na cozinha onde Antônio e Carla tomavam um chá. Disse: Caí no banheiro. E acordei com eles me colocando em uma cama no quarto. Ela colocou gelo na minha perna e me deu um remédio para dor, que, evidentemente, naquele contexto, não fez efeito.

No sábado pela manhã, levaram-me ao hospital. Dores intensas só em me mover minimamente. Constatou-se fratura de fémur. Ainda bem que não foi a bacia. Decidiram me transportar para Verona. O hospital de Pordenone poderia fazer a cirurgia, mas como tenho deficiência respiratória, se acontecesse algum acidente de anestesia, lá, eles não teriam como me ajudar. Duas horas e meia de viagem na ambulância. Eu que sempre achei as estradas italianas ótimas, naquela tarde, experimentei como podem fazer sofrer a quem está em uma maca.

A primeira experiência daquele dia e do domingo foi de ser acolhido no imenso hospital Borgo Trento de Verona. Aqui tenho amigos e até médicos que conseguiram para mim uma vaga no setor de ortopedia do hospital. Ali fiquei no corredor, esperando. Foi bom "entrar na fila dos machucados e feridos, esperando cirurgia". Mesmo com dor e impaciência descobri que para mim era urgentíssimo, para o hospital não era emergência. Eu podia esperar. Havia outros em situação de maior risco. E no final de semana, menos atendentes e menos médicos. Os amigos conseguiram uma enfermaria com dois leitos. Ao meu lado, um lavrador da região da minha idade com um pé ferido por uma motosserra.

No domingo, no começo da noite me levaram à sala de cirurgia. Colocaram-me três pinos na perna. Graças a Deus não foi prótese. A recuperação, me dizem, é mais rápida. Nos dois primeiros dias, (aí já com muito menos dor), a dependência dos enfermeiros era total e eu não conseguia uma comunicação que fosse além do indispensável. Hospital imenso, corredores sem fim. Devo compreendê-los. Minha tendência é de ir além do que posso e tentar me arranjar por mim mesmo (por exemplo, ir ao banheiro). Mas, aí compro uma briga sem fim... Aqui, não vale a pena ser subversivo... Principalmente se ainda devo ficar com eles por uma semana. O que é bom é a quantidade de amigos e amigas que passam para me ver... E me dizem que eu estou ótimo. Mesmo que isso seja um puro olhar de boa vontade, me serve como apelo: eu devo estar e o modo de conseguir isso é não me render ao que parece inexorável e não me fixar em mim. Com Cristiana, conversemos sobre o livro que ela está escrevendo sobre Cinema. Com Marcos, quero aprender dele como consegue sozinho apresentar teatralmente com mamulengos (bonecos) a carta do papa "Evangelii Gaudium" . Preciso aprender a fazer isso. Com Aldo, é bom ouvi-lo contar as dificuldades dos sicilianos com a máfia. À noite, vem o silêncio da solidão e se o sono não chega, preparo no coração uma reflexão sobre como a Páscoa pode ser a raiz da espiritualidade libertadora, a razão do movimento Fé e Política.

Coisa boa e mesmo feliz poder viver nessa Quaresma essa experiência de fragilidade, dever novamente aprender a depender totalmente dos outros  e lhes dar ocasião de cuidar.  Com meu olhar e minha palavra, também cuidarei deles. É também uma sabedoria dever constatar a velhice (no Nordeste, eu escutava um ditado antigo do povo que dizia: Velho morre de queda), mas principalmente alegrar-me com os amigos e amigas que vêm me ver com tanto carinho e com os que escrevem e comunicam a sua solidariedade.

 Se eu pudesse, diria a esses médicos competentíssimos e sempre apressados que o doente não é apenas um objeto a ser cuidado. É uma pessoa com a qual se relacionar. O sujeito de minha cura não será nenhum deles. Serei eu mesmo com a ajuda deles. Mas, já que não tenho como, deixemos eles na sensação de que são deuses gregos da mitologia clássica, encarnados hoje em bons funcionários de um hospital que deixou de ser público e se tornou "Empresa hospitalar".

Hoje, acordo de madrugada, escrevo essas reflexões e me preparo para mais um dia. A perna dói moderadamente. A cabeça está boa. Vamos em frente. Quem sabe, amanhã me liberam daqui (já estou podendo caminhar - com a ajuda de um andador ) e poderei ir para um centro de reabilitação. Mais uma semana de paciência e exercícios (do corpo e da alma) e depois enfrentarei a viagem ao Brasil. Mas, de uma coisa não posso abrir mão e nem tenho como explicar isso a eles: preciso celebrar a Páscoa. Para mim, é uma terapia muito mais forte e restauradora. Nesse ano, vou mais uma vez (será a segunda) ao antigo mosteiro de Goiás. Ali, viverei a tensão da saudade dos anos da comunidade e das Páscoas que pude receber ali. Mas, o importante é estar aberto à Páscoa de hoje e sair fortalecido para gritar ao mundo o aleluia da libertação e dizer porque: Por que? Jesus ressuscitou mesmo. Verdadeiramente. E nós somos chamados a testemunhar isso. Um abraço do irmão Marcelo

 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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