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Discurso ao receber o título de Doutor Honoris Causa

Discurso ao receber o título de Doutor Honoris Causa na UFPB

 Excelentíssima Professora Liana Figueira Albuquerque, digníssima vice-reitora da UFPB,

Queridos irmãos e irmãs, professores e professoras, companheiros e companheiras que vieram até aqui me acompanhar, 

A presença de vocês aqui me enche de coragem para enfrentar um evento para o qual não estou habituado. Não sou uma pessoa de títulos, nem de honrarias. Onde me criei, em Camaragibe, como no Brasil do povo, de fato, as pessoas só costumam chamar de doutor médico ou advogado. E eu não me via recebendo esse título a não ser que fosse para recebê-lo e imediatamente passa-lo para o cacique Ednaldo Tabajara ou outro dos parentes índios do Nordeste brasileiro. 

De todo modo, é com esse espírito que agradeço aos professores Lusival Barcellos e Carlos André Cavalcante que propuseram a outorga deste título à minha pessoa.

Agradeço ao corpo de professores e professoras do CONSUNI e a todos e todas que aprovaram essa iniciativa. Agradeço de coração ao amigo advogado, Doutor Márcio Tavares de Albuquerque, que não poupou esforços até me ver recebendo essa homenagem que no começo nem contava com minha aprovação, a não ser quando percebi que poderia fazer deste momento um sacramento do encontro cada vez mais profundo da Universidade com os movimentos sociais e com os povos originários da Paraíba. 

Peço permissão a vocês para evocar aqui os doutores Honoris Causa que me ensinaram e me prepararam para esse doutorado cujo reconhecimento, hoje, recebo de vocês. 

Não quero repetir aqui o que comumente se diz nessas horas: a sabedoria dos meus pais e o muito que devo à minha família que está aqui representada por alguns irmãos e sobrinhos de sangue e também por irmãos e sobrinhos de adoção em uma família maior e ampliada. 

Para mim não deixa de ser significativo o caráter extraordinário que este título tem. Há outras universidades e faculdades no Brasil, nas quais já fui convidado para dar cursos especiais, ou fazer palestras, ou assessorar encontros. Mas, com exceção de um evento há dois anos, aqui na Universidade Federal da Paraíba, isso quase nunca ocorreu.  Então, a iniciativa de me conceder esse título foi totalmente gratuita. E por isso, agradeço mais ainda e me sinto chamado a repassar esse título à multidão de companheiros e companheiras que se sentem representados e representadas aqui pela minha pessoa. 

Quero dedicar esse título a eles e elas, do MST, aqui representado por alguns companheiros e companheiras e pela palavra do amigo João Pedro Stédile. Quero dedicar este título aos povos originários, aqui representados pelo cacique Ednaldo Tabajara, cuja história comovente de retomada da unidade do seu povo foi tão bem transcrita pelos professores Eliane Faria e Lusival Barcellos dessa Universidade. Também representados pelo parente Gildo Aquino que nos liga ao povo Xucuru da Serra Sagrada do Ororubá. E  João Irineu do povo Potiguara, estes parentes, que, por mais de 500 anos, permaneceram sempre como verdadeiros doutores na arte da resistência cultural e mesmo física, guardiães do litoral norte do Estado da Paraíba. Junto com os povos originários, acho que este título que hoje recebo deve muito a juventudes com as quais procuro viver um profundo diálogo intergeracional, principalmente meus irmãos e irmãs da Comunidade Bremen. Mas, queria reocordar aqui quem primeiro me pôs em comunhão com os Potiguara da Baía da Traição foi Dom José Maria Pires, um dos meus mestres, que têm a ver com este título. Daqui desta sala, peço a bênção a Dom José Maria e que ele seja meu padrinho honorário nesse meu batismo na UFPB. 

Vocês sabem que daqui a oito dias, se completam 40 anos de um grande evento. Na noite de 20 de novembro de 1981, na Praça do Carmo no Recife, onde, no final do século XVII, a cabeça de Zumbi dos Palmares foi exposta publicamente e pregada em um poste, ali naquele local Dom Helder Camara, Dom José Maria Pires e uma multidão de irmãos e irmãs celebraram a chamada Missa dos Quilombos, cantada por Milton Nascimento e grande coral de cantores e cantoras. Ali, Dom Helder presidiu a Missa e Dom José Maria Pires fez a homilia na qual afirmou profeticamente o seguinte texto que quero retomar aqui: 

Estamos presenciando hoje e aqui os sinais de uma nova aurora que vem despertar a Igreja de Jesus Cristo: No passado, ela não amaldiçoou o pelourinho, não abençoou os quilombos, não excomungou os exércitos que se organizaram para combatê-los e exterminá-los. A Igreja não estava com o povo negro e parece que hoje começa a estar. Começa a nos querer bem”. 

Sim, Dom José Maria, o senhor tinha razão ao afirmar naquela homilia: “mais longa do que a servidão do Egito, mais dura do que o cativeiro da Babilônia foi a escravidão do povo negro no Brasil”. 

Mas, agora, mesmo depois de 40 anos, ainda ressoa aqui nesta sala o seu grito daquela noite: “Chegou o tempo de tanto sangue ser semente e de tanta semente germinar”

Sim, chegou. Nós vamos aquilombar o Brasil. Não vamos descansar enquanto não desmontar a iniquidade do racismo estrutural da sociedade dominante e principalmente o racismo religioso. 

Eu lhe prometo, Dom José Maria: eu e meus irmãos e irmãs aqui presentes não vamos nos conformar em ver pessoas que se dizem cristãs discriminarem outras por serem negras ou índias. Não aceitaremos que continuem a perseguir e atacar comunidades da religião dos Orixás e de outras tradições negras. Junto com o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, o CONIC e com todas as pessoas de boa vontade, se em nome de Jesus eles destroem, em nome de Jesus nós reconstruiremos. 

Bênção, Mãe Stella de Oxossi, minha querida amiga, hoje no Orum. 

Mas João Pessoa também me deu as minhas duas queridas irmãs Agostinha Vieira de Melo e Maria Letícia Penido, junto das quais vim a João Pessoa em 1970 para ajudá-las a começar a Fraternidade Deus Conosco.

Hoje, a presença delas é representada pela grande amiga comum (delas e minha) a querida Ivone Gebara que nos presenteou com suas palavras, pelos meus companheiros e companheiras do CEBI que Agostinha coordenou por tantos anos aqui na Paraíba e também pelo grupo Emaús, grupo de assessores e assessoras de movimentos populares, aqui representado pela minha irmã Rose Fernandes. Muito obrigado, gente.  

Mas, este título que hoje vocês me dão me recorda outro saudoso irmão ao qual também devo muito neste caminho que fiz até chegar aqui: o querido e saudoso irmão Pedro Casaldáliga. 

Em uma noite como essa, no 24 de outubro do ano 2000, o querido Pedro, então bispo de São Felix do Araguaia, recebia este mesmo título da Universidade de Campinas em São Paulo, a UNICAMP. 

Ali Pedro pediu permissão ao reitor e aos professores e professoras da UNICAMP para transformar o título Honoris Causa em Passionis Causa: a causa da Paixão. Neste momento, quero pedir a bênção a Pedro e tomo a liberdade de repetir as palavras dele ao receber este título: 

“A paixão que poderia mais justificar o título que a Universidade me concede é A PAIXÃO PELA UTOPIA. Uma paixão escandalosamente desatualizada, nesta hora de pragmatismos, de produtividade, de mercantilismo total, de pós-modernidade arrependida. Passionis Causa – a causa da Paixão pela Utopia é, em outras palavras, a paixão da Esperança; e traduzindo em termos cristãos, a paixão de Deus e de Jesus Cristo. Uma paixão que, em primeira e última instâncias, coincide com a melhor paixão da própria Humanidade, quando ela se quer plenamente humana, autenticamente viva e definitivamente feliz”. 

A paixão da Utopia tem duas dimensões: tem o aspecto do apaixonamento e tem o conteúdo do sofrimento que está presente quando falamos em “paixão de Cristo”. 

Todos nós aqui sabemos como a paixão pela Utopia nos faz sofrer. Mas, alguém já dizia que a esperança nos é dada para servirmos aos que perderam a esperança. De esperança em esperança, caminhamos, esperançando-nos. O "princípio esperança" é o mais radical DNA da raça humana. 

A utopia começa pelo sonho. E muitas utopias e suas realizações históricas começaram na Universidade. Por isso, nos somamos a todos e todas que, nesta Universidade, procuram romper o círculo vicioso do academicismo e se colocam como operários da Palavra a serviço da Vida em todas as suas dimensões.

 Parabéns para os companheiros e companheiras que procuram colocar essa universidade mais e mais voltada para o povo e não para a oligarquia. Contem comigo e com os que vieram estar hoje aqui conosco na luta por uma universidade desavergonhadamente utópica, isso é, pluricultural; politizada e por isso militante; livre e por isso libertadora. É preciso que em todo o Brasil, o povo possa conquistar a Universidade como se conquista a terra, a moradia, a saúde, a cidadania... 

Hoje recebo este título como profecia de um novo tempo no qual o título de maior valor não será o do grau conquistado na academia e sim o de doutorado na sabedoria compreendida como a capacidade de dar sabor à vida e de espalhar o bem viver e o bem-conviver. 

Meus pais me colocaram no caminho da única sabedoria que vale a pena: a do amor. E aí, quanto mais amamos, mais aprendemos a querer amar. Aí a universidade se transformará na proposta de Edgar Morin em unidiversidades dos saberes.  O poeta espanhol Oscar Campana afirma:

"Se não houver caminho que nos leve, nossas mãos o abrirão,

e haverá lugar para as crianças, para a vida e para a verdade;

e esse lugar será de todos, na justiça e na liberdade.

Se alguém se anima, avise: seremos dois a começar..."

 Queridos irmãos e irmãs, 

              partilho simbolicamente com vocês todos e todas este título de Doutor Honoris Causa como a nobre e mais honrável de todas as causas a da utopia. Reparto esse título com meus irmãos e irmãs da Comunidade Bremen que diariamente me ensinam a espiritualidade libertadora através do diálogo intergeracional. Reparto este título com os irmãos e irmãs que por sua paixão pela Utopia enfrentam a arena da Política partidária nos diversos níveis e são líderes políticos seja no nível federal, estadual ou municipal, aqui representados nesta sala por dois vereadores, o Carlos Henrique daqui de João Pessoa e a querida amiga Liane Cirne, vereadora no Recife. 

              Estamos juntos na luta contra a necropolítica responsável pelo descuido e desvínculo que levaram à morte milhares e milhares das mais de 600 mil pessoas vítimas da pandemia e cujas vidas poderiam ter sido salvas. Não vamos nos deixar abater na luta, pois sabemos que, como afirmava já no seu tempo Teodor Adorno, só a educação pode nos salvar da barbárie. E nós, filhos e filhas do Brasil sabemos como o grande Paulo Freire, cujo centenário de nascimento celebramos neste ano, nos possibilitou desenvolver uma educação a partir do diálogo e em perspectiva de uma espiritualidade laical e militantemente libertadora. 

                   Confirmados nós todos e todas como doutores e doutoras na teimosia da esperança utópica,  fiquemos com o que diziam os índios zapatistas no sul do México: 

"Nós somos um exército de sonhadores. Por isso somos invencíveis" .  


Muito obrigado, muito obrigado mesmo. 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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