No isolamento provocado pela pandemia, o chamado a um retiro
Marcos conta que eles contam a Jesus tudo o que tinham visto e ensinado. Diz ainda que era tanta gente que ia e vinha que eles mal tinham tempo de comer. Então, Jesus os chama a um lugar à parte, local retirado ou isolado para descansarem. Tomam um barco e vão a um lugar assim, mas o povo descobre. Vai na frente e quando Jesus chega e vê a multidão, sente suas entranhas se moverem de compaixão porque eram como ovelhas sem pastor. E começa a lhes ensinar.
Quando sou chamado a pregar retiro para grupos missionários, gosto de começar recordando esse texto, lembrando os vários momentos fortes do texto. Convido as pessoas a se sentirem como os discípulos e discipulas, voltando de uma missão que é exigente.
Hoje também, podemos, vocês e eu, refazer aquela reunião dos discípulos e discípulas com Jesus. Toda celebração de domingo deveria ser para nós um reencontro com Jesus.
Neste caso, o que você contaria a Jesus sobre o que tem visto, ouvido, feito e partilhado com as pessoas? E do que tem vivido em sua vida pessoal, o que gostaria de dizer para você mesmo e para Jesus?
No evangelho de Marcos, esse texto está situado nos capítulos que se costuma chamar “seção dos pães”, na qual é central a partilha do alimento. Mesmo nesse relato, no qual o assunto não é esse, o evangelho alude à comida. Diz que a agitação dificulta a partilha. Pode ser alusão às refeições litúrgicas feitas às pressas e de forma dispersiva.
Nos quatro evangelhos, essa é a única vez na qual Jesus chama os discípulos a um retiro e a finalidade do retiro não é concentração, não é aprender novas doutrinas ou aprofundar nada. É repousar. Trata-se do repouso bíblico. É como o repouso de Deus no sétimo dia da criação (Gn 1). Lembra o repouso prometido por Deus aos que querem entrar no seu repouso. E o salmo fala isso recordando os 40 anos do povo hebreu no deserto. E aí entrar no repouso de Deus era viver a libertação e a posse da terra (Salmo 95). Para nós, esse repouso é a alegria e a bênção da vida e da partilha. Hoje os nossos índios nos ensinaram a chamar isso: o bem-viver.
Conforme o evangelho, a tentativa de retiro que Jesus quis fazer com os discípulos parece ter fracassado porque quando chegaram ao local já o encontraram invadido pela multidão. Jesus assume isso e mostra que o retiro com ele nunca pode ser separação do povo ou insensibilidade em relação ao que os pobres sofrem. Jesus os vê como ovelhas sem pastor e aí a crítica é aos governantes políticos, mas também aos chefes da religião que, em nome de Deus, legitimam os poderes opressores.
Hoje, esse evangelho nos provoca a rever a missão das Igrejas e a nossa missão neste momento de pandemia e como podemos passar dessa realidade tão sofrida para um tempo novo do bem-viver.
Líderes religiosos e pensadores sociais têm provocado a reflexão sobre como a humanidade vai sair desses dois anos de sofrimentos provocados pela pandemia, que, como na carta sobre a fraternidade humana, o papa Francisco chama atenção: está sendo muito agravada por causa do modo como o mundo está organizado para o desvínculo e a não solidariedade.
Se lemos esse evangelho a partir da realidade atual, podemos ouvir Jesus nos chamar a um novo tipo de retiro. Em nossos dias, ir a um lugar retirado não é só manter o distanciamento físico que a pandemia provocou. É a sabedoria pessoal e comunitária de transformar a situação de isolamento físico em possibilidade de retiro no sentido bíblico do repouso que refaz a vida, renova as energias e, principalmente, como ocorreu no evangelho, não ocorre a não ser na comunhão com as pessoas que amamos e com o povo sofredor. Outro dia, em conversa com meu irmão e amigo Ricardo Aléssio, ele observou que uma das piores consequências desse isolamento forçado pela pandemia seria a perda da comunicação pela palavra. O distanciamento físico nos obrigou a nos comunicar muito mais por mensagens escritas e elas cumprem a sua missão. No entanto, não podem e não devem substituir a comunicação oral. Mesmo se ainda há restrições que devemos respeitar e fazem com que os encontros presenciais ainda sejam limitados, devemos garantir seja como for e priorizar a escuta recíproca. Talvez nesse momento, a postura menos evangélica seja se deixar dominar pela tendência de se isolar e se sentir cansado/a de se comunicar. Nas circunstâncias em que vivemos, manter a opção evangélica de, ao menos se comunicar por telefone, ou quando possível, por vídeo, preservará a comunhão humana e a resistência subversiva contra a desumanidade que aposta na nossa incomunicabilidade para seguir sua dominação opressora.
Atualmente, retomar a atitude de Jesus que se deixa tomar visceralmente pela compaixão pelo povo sofrido exige de nós essa opção. O evangelho de hoje conclui dizendo que Jesus passou a lhes ensinar. E já vimos que esse termo em Marcos vai além de transmitir mensagem. É comunicar o bem-viver.