É preciso recriar o humano
(leitura orante do evangelho João 9)
Como a festa atraía muita gente, o cego pobre mendigava em uma porta do tempo. Os discípulos se revelam ainda prisioneiros da cultura religiosa tradicional. Ao ver o cego, a preocupação deles foi saber quem tinha pecado, se o próprio cego ou seus pais - para ele nascer cego. Jesus não quer saber quem pecou ou quem não pecou. Não aceita uma mentalidade religiosa, que procura culpar quem já é vítima. Claro que a saúde física depende muito da saúde psíquica e interior. Há profunda relação entre saúde e salvação. Mas, Jesus rejeita a relação entre doença e culpa. E o modo como ele cura transgride a lei religiosa. Era o dia de sábado, no qual é proibido trabalhar. Jesus diz que, quando se trata de dar saúde e luz às pessoas e ao universo, o Pai trabalha sempre e ele, Jesus age junto com o Pai. Ao falar assim, ele faz o gesto para acompanhar a palavra. E o gesto é o mesmo de Deus ao criar o homem da lama da terra. Jesus faz lodo com a saliva e passa nos olhos do cego. De dois modos, Jesus desrespeita a lei. Atua no dia do sábado e ao tocar na saliva, faz uma coisa que a lei proíbe. Como todos os fluidos do corpo, a saliva era considerada impura (Ver Lv 15, 8). Jesus cospe na terra, faz lama com a saliva e passa nos olhos do cego.
Até hoje, existem rituais xamânicos que usam como remédio a saliva com suas propriedades curativas. Agora, ao refazer o gesto divino da criação com o cego, Jesus diz que recriar o ser humano é possibilitar uma nova luz para todos. Nós participamos desse novo ato criador à medida que levamos luz em torno de nós e para o mundo. A nova proposta de Jesus para a nossa relação com Deus é passar de uma religião estática e tradicional, feita de leis, ritos e sacrifícios, para uma fé nova. O que Jesus propõe é uma relação íntima com Deus, inserida na comunidade e de forma laical. Ele abre nossos olhos para nos fazer ver as coisas de forma nova e, assim, nos envia ao mundo. Ele não cura simplesmente. Cura e envia ao mundo. Nessa história, a cura se dá quando o homem se lava no reservatório de água que se chamava Siloé, enviado.
O evangelho faz um jogo de palavra com o nome da piscina Siloé (enviado) e diz que foi se lavando nas águas que representam Jesus (o enviado) que o ser humano recebe uma vida nova e passa a agir no mundo com uma missão nova. É claro que os cristãos sempre entenderam essas águas de Jesus como sendo as águas do batismo. Por isso, esse evangelho é lido nesse contexto de preparação da Páscoa e do catecumenato cristão. No entanto, existe alguma água no mundo que não seja água enviada por Deus? Água que é sinal – sacramento do amor divino pela humanidade?
Atualmente, o mundo vive uma grave crise hídrica. A ONU comemora o 22 de março (hoje) como Dia mundial de proteção e cuidado com a água. Os movimentos sociais e comunidades lutam para que a água seja reconhecida como bem comum da humanidade e direito de todo ser vivo. Portanto, a água não deve ser privatizada e mercantilizada, como é hoje. Não deve ser objeto de conflitos e motivos de guerra entre povos. Todas as tradições espirituais reconhecem a água como sacramento do amor divino.
De fato, o evangelho de hoje traz a descrição do processo conflitivo que aconteceu entre a religião oficial e o ser humano que, através das águas, recebeu de Jesus a luz de uma vida nova e da missão. O ser humano, antes cego, não tinha responsabilidade nenhuma. À medida que fica vendo (ele que era cego de nascença), tem de assumir responsabilidade. Entra em conflito com a sinagoga e acaba expulso da religião.
Certamente, por trás desse relato construído no final do século I, estava o conflito e a ruptura entre o Judaísmo rabínico daquela época e a comunidade cristã. Para nós soa como um conflito entre os religiosos que defendem as tradições e se preocupam pouco com a vida concreta das pessoas e o cego que representa a juventude que simplesmente dizia: eu era cego e agora vejo... É o que basta.
Hoje, quantos conflitos morais e quanta insensibilidade continuamos a ver entre os que defendem as tradições religiosas e os que querem ser livres e se sentem com o direito de agir no mundo. O evangelho de hoje nos questiona sobre de que lado estamos nós e nos provoca a nos colocar sempre a favor da vida e da liberdade. Esse é o lado de Jesus. Essa é a sua Páscoa.
(Escrevi esse texto na semana passada, antes do agravamento dessa crise e portanto não toco ainda aqui no que estamos vivendo nesses dias de Quarentena. Seria fácil ligar isso com a realidade de um cego que por sua condição tinha de ficar em quarentena permanente na religião que obedecia à lei da pureza legal. Hoje, nós temos sim de ficar em quarentena temporária, mas ao mesmo tempo, somos interpelados a nesse tempo, aprimorar formas novas de comunhão e solidariedade).