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É preciso recriar o humano

É preciso recriar o humano

(leitura orante do evangelho João 9)

               Neste 4º domingo da Quaresma, lemos o segundo dos três textos evangélicos que a tradição litúrgica lê no processo do catecumenato (O primeiro foi lido no domingo passado e era o encontro de Jesus com a mulher samaritana – Jo 4). Agora, o evangelho deste 4º domingo da Quaresma é a cura do cego de nascença – Jo 9.  A narrativa se passa em Jerusalém, no contexto da festa judaica das tendas. Nos oito dias da festa, havia uma cerimônia na qual cada noite se acendiam os grandes candelabros do templo, como sinal da iluminação do mundo e recriação da vida. No capítulo anterior, (Jo 8, 12), Jesus havia afirmado: Eu sou a luz do mundo! (A luz do mundo não é o candelabro do templo). Agora repete isso, com uma história na qual o acender a luz passa a significar abrir os olhos a quem nasceu cego. Toda a narrativa é marcada pela polêmica com o templo. O texto já começa afirmando que só à medida que Jesus deixa o templo, ele vê que o cego do lado de fora da porta. O templo (a religião) não permite ver o mundo dos pobres, do lado de fora. É saindo do santuário que Jesus viu o cego. O texto usa um termo genérico (anthropos, isso é ser humano). É como se dissesse: Ao sair do plano religioso, Jesus passou e viu que o ser humano estava cego. A história é contada de forma pedagógica, como catequese sobre a descoberta progressiva da identidade mais íntima de Jesus. 

Como a festa atraía muita gente, o cego pobre mendigava em uma porta do tempo. Os discípulos se revelam ainda prisioneiros da cultura religiosa tradicional. Ao ver o cego, a preocupação deles foi saber quem tinha pecado, se o próprio cego ou seus pais - para ele nascer cego. Jesus não quer saber quem pecou ou quem não pecou. Não aceita uma mentalidade religiosa, que procura culpar quem já é vítima. Claro que a saúde física depende muito da saúde psíquica e interior. Há profunda relação entre saúde e salvação. Mas, Jesus rejeita a relação entre doença e culpa. E o modo como ele cura transgride a lei religiosa. Era o dia de sábado, no qual é proibido trabalhar. Jesus diz que, quando se trata de dar saúde e luz às pessoas e ao universo, o Pai trabalha sempre e ele, Jesus age junto com o Pai. Ao falar assim, ele faz o gesto para acompanhar a palavra. E o gesto é o mesmo de Deus ao criar o homem da lama da terra. Jesus faz lodo com a saliva e passa nos olhos do cego. De dois modos, Jesus desrespeita a lei. Atua no dia do sábado e ao tocar na saliva, faz uma coisa que a lei proíbe. Como todos os fluidos do corpo, a saliva era considerada impura (Ver Lv 15, 8). Jesus cospe na terra, faz lama com a saliva e passa nos olhos do cego. 

Até hoje, existem rituais xamânicos que usam como remédio a saliva com suas propriedades curativas. Agora, ao refazer o gesto divino da criação com o cego, Jesus diz que recriar o ser humano é possibilitar uma nova luz para todos. Nós participamos desse novo ato criador à medida que levamos luz em torno de nós e para o mundo. A nova proposta de Jesus para a nossa relação com Deus é passar de uma religião estática e tradicional, feita de leis, ritos e sacrifícios, para uma fé nova. O que Jesus propõe é uma relação íntima com Deus, inserida na comunidade e de forma laical. Ele abre nossos olhos para nos fazer ver as coisas de forma nova e, assim, nos envia ao mundo. Ele não cura simplesmente. Cura e envia ao mundo. Nessa história, a cura se dá quando o homem se lava no reservatório de água que se chamava Siloé, enviado. 

O evangelho faz um jogo de palavra com o nome da piscina Siloé (enviado) e diz que foi se lavando nas águas que representam Jesus (o enviado) que o ser humano recebe uma vida nova e passa a agir no mundo com uma missão nova. É claro que os cristãos sempre entenderam essas águas de Jesus como sendo as águas do batismo. Por isso, esse evangelho é lido nesse contexto de preparação da Páscoa e do catecumenato cristão. No entanto, existe alguma água no mundo que não seja água enviada por Deus? Água que é sinal – sacramento do amor divino pela humanidade?

Atualmente, o mundo vive uma grave crise hídrica. A ONU comemora o 22 de março (hoje) como Dia mundial de proteção e cuidado com a água. Os movimentos sociais e comunidades lutam para que a água seja reconhecida como bem comum da humanidade e direito de todo ser vivo. Portanto, a água não deve ser privatizada e mercantilizada, como é hoje. Não deve ser objeto de conflitos e motivos de guerra entre povos. Todas as tradições espirituais reconhecem a água como sacramento do amor divino. 

De fato, o evangelho de hoje traz a descrição do processo conflitivo que aconteceu entre a religião oficial e o ser humano que, através das águas, recebeu de Jesus a luz de uma vida nova e da missão. O ser humano, antes cego, não tinha responsabilidade nenhuma. À medida que fica vendo (ele que era cego de nascença),  tem de assumir responsabilidade. Entra em conflito com a sinagoga e acaba expulso da religião.

Certamente, por trás desse relato construído no final do século I, estava o conflito e a ruptura entre o Judaísmo rabínico daquela época e a comunidade cristã. Para nós soa como um conflito entre os religiosos que defendem as tradições e se preocupam pouco com a vida concreta das pessoas e o cego que representa a juventude que simplesmente dizia: eu era cego e agora vejo... É o que basta. 

Hoje, quantos conflitos morais e quanta insensibilidade continuamos a ver entre os que defendem as tradições religiosas e os que querem ser livres e se sentem com o direito de agir no mundo. O evangelho de hoje nos questiona sobre de que lado estamos nós e nos provoca a nos colocar sempre a favor da vida e da liberdade. Esse é o lado de Jesus. Essa é a sua Páscoa.    

(Escrevi esse texto na semana passada, antes do agravamento dessa crise e portanto não toco ainda aqui no que estamos vivendo nesses dias de Quarentena. Seria fácil ligar isso com a realidade de um cego que por sua condição tinha de ficar em quarentena permanente na religião que obedecia à lei da pureza legal. Hoje, nós temos sim de ficar em quarentena temporária, mas ao mesmo tempo, somos interpelados a nesse tempo, aprimorar formas novas de comunhão e solidariedade).

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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