Em Maria, contemplamos nosso processo pascal
No Brasil, nesse domingo, a Igreja Católica celebra a assunção de Maria. Quem procura viver a ecumenicidade da fé cristã lamenta que o dogma da Assunção de Maria e, portanto, o que celebramos nesta festa não é bíblico nem ecumênico. Além disso, em nossos dias, falar de que alguém subiu ao céu em corpo e alma é linguagem incompreensível para a maior parte da humanidade. É importante irmos além da linguagem tradicional e descobrir a mensagem contida nesta festa da páscoa de Maria.
É claro que a linguagem da assunção é simbólica, mas por trás dela está a promessa bíblica da ressurreição, ou seja, da participação de Maria e de todos nós na ressurreição de Jesus. A fé cristã não se interessa apenas pela alma e sim pela integridade da pessoa e da vida.
Para algumas espiritualidades orientais a alma individual mergulha na alma cósmica como um peixe mergulha no mar. Então, podemos contemplar como ocorrido em Maria na sua assunção aquilo que é destino e vocação de todos/as nós. E essa participação na ressurreição de Jesus ou, como dizem os orientais, “divinização” do nosso ser não acontece apenas no momento da morte. É um processo de toda a vida.
O evangelho escolhido e lido nas Igrejas nesses dias (Lucas 1, 39 – 56 – o relato da visita de Maria grávida a Isabel) conta que Maria subiu de Nazaré na Galileia a uma aldeia na montanha da Judeia para servir a Isabel, sua prima anciã que tinha engravidado. Essa subida à montanha para servir é símbolo e amostra de que quando nos dispomos a servir, sempre nos elevamos. Sempre subimos. E isso é um processo pessoal e coletivo.
Nos meados do século XX, Theillard de Chardin, paleontólogo e espiritual, falava em passar da biosfera para noosfera (a esfera da interiorização) e afirmava que todo o universo evolui e converge. E essa convergência é na linha da cristificação para Deus. Como escreve Paulo aos coríntios: “até que Cristo seja tudo em todos”.
Uma visão evangélica desse processo é na linha da transformação progressiva do nosso ser. Na carta aos romanos, Paulo escreve: “A criação inteira sofre como em dores de parto e mesmo nós que temos as primícias do Espírito gememos dentro de nós mesmos esperando a libertação do nosso corpo” (Rm 8, 22- 23). É bela essa imagem do parto da criação e parto permanente de cada um/uma de nós. Jesus também usou essa imagem, quando, na ceia, afirmou aos discípulos: “A mulher quando está para dar a luz sofre porque vê chegada a sua hora, mas na hora em que a criança nasce se alegra porque pôs no mundo uma vida nova” (Jo 16, 22).
Vivemos continuamente nesse parto de ressurreição pessoal e comunitária, coletiva e até cósmica. É disso que se trata. Nem mais nem menos. E esse processo de evolução ou de amadurecimento interior toma inclusive formas também no corpo e em todo o estilo de vida (não é somente algo no íntimo de cada pessoa). Esse processo é o desafio de todos os processos revolucionários.
Um amigo, Marcos Arruda me contou que foi à Nicarágua sandinista logo depois da vitória sandinista e lá conversou com Ernesto Cardenal, então ministro da cultura. Marcos ficou admirado quando Cardenal afirmou: “Muita gente pensa que agora que ganhamos o governo, a revolução venceu e nesse sentido chegou à sua meta. Absolutamente não. Agora a revolução vai começar. Se não houver mudança profunda nas pessoas, ela não subsistirá. Como já dizia Che Guevara: Sem homem novo (renovado), não há sociedade nova”.
Quem lida nos ambientes políticos com as ambições pessoais e as rivalidades de cada dia mesmo nos grupos nossos de caráter revolucionário sabe que isso é um empecilho sério para qualquer caminho mais profundo de mudanças no mundo. Por isso, é tão importante aprofundar a questão de uma espiritualidade laical, humana e que dê dignidade e garanta Ética e coerência de posturas tanto no plano social, como no nível interior e pessoal à Política.
Nas celebrações da festa da assunção de Maria, a primeira leitura é tirada do Apocalipse 12. Mostra no céu a figura de uma mulher grávida, com a lua debaixo dos pés e coroada com doze estrelas. O povo cristão sempre viu nessa figura simbólica a imagem da nova humanidade, da humanidade messiânica representada pela mulher. Assim como a mulher, a humanidade está sempre grávida do ser humano novo. E o Messias (Cristo) é imagem e modelo desse ser humano novo nascido dentro de cada um de nós, mas também nas estruturas desse mundo novo pelo qual lutamos.
No Apocalipse, a mulher que aparece no céu grávida do ser humano novo tem um inimigo. O dragão quer devorar a criança, assim que ela nascer. A mulher dá a luz e foge para o deserto, amparada pela Terra que a protege. Neste momento que vivemos, assim como a mulher, símbolo da humanidade renovada, teve de se refugiar no deserto para não morrer, estamos vivendo este tempo de quarentena e distanciamento social, como deserto duro e exigente. O Capitalismo, verdadeiro dragão dos nossos dias, procura devorar tudo o que vê pela frente, inclusive a água e a própria vida. A tragédia pior que nos atinge é a crise ecológica. O próprio vírus que nos ameaça vem da destruição das condições saudáveis de vida no planeta.
Celebrar a vitória de Maria, mãe de Jesus é um jeito de dizer que nossa luta social, política, ecológica e espiritual começa a ser vitoriosa. Cantar hoje o cântico de Maria pode parecer utópico e irreal, mas cantamos como já estando acontecendo algo que estamos ainda preparando. No entanto, cremos e já vemos acontecendo em nós e nas nossas comunidades as sementes deste processo. Por isso, nos comprometemos e vamos ensaiando esse projeto no nosso dia a dia.