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Entrevista dada à TV Venezuelana

Entrevista sobre bolivarianismo e espiritualidade

(dada ao canal nacional TV Venezuelana e ao jornal "Correo del Orinoco", domingo 27 de maio de 2012)

Vanessa Davies[1]

Vanessa:

No nosso programa de hoje recebemos Marcelo Barros. Marcelo é brasileiro, teólogo da libertação e coordenador da Associação ecumênica de teólogos e teólogas do terceiro mundo. Ele está passando aqui em Caracas, a caminho de Cuba, onde foi convidado a falar sobre o pensamento político do presidente Chávez e a espiritualidade. Marcelo, bem-vindo ao nosso programa. Era preciso um brasileiro para falar disso na Venezuela e em Cuba?

Marcelo:

- Acho que não, Vanessa. Tanto na Venezuela, como em Cuba, há muitos bons teólogos e teólogas que podem fazer isso melhor do que eu. Talvez seja mais fácil para mim, brasileiro, porque você sabe, ninguém é profeta em sua própria terra.

V: De fato, aqui, o teólogo que disser o que você anda dizendo por aí terá sem dúvida problemas com a hierarquia eclesiástica. Mas, antes de tudo, explique qual é a relação entre bolivarianismo e espiritualidade.

M: Espiritualidade é o dom da pessoa dar um sentido novo à sua vida. Quem é cristão acredita que isso é dom do Espírito que nos conduz para isso. Mas, seja que a pessoa seja religiosa ou não, espiritualidade é um caminho de amor. Ora, toda verdadeira revolução é motivada e impulsionada pela solidariedade amorosa. Por isso, toda verdadeira revolução é espiritual.

V: Marcelo, eu não leio muitos livros de espiritualidade, mas não sei se nos livros de espiritualidade que andam por aí, eu encontraria essa definição de espiritualidade que você acabou de dar. Por que?

M: Penso que a maioria dos livros de espiritualidade tradicional a que você se refere confundem espiritualidade com espiritualismo e por isso têm uma visão espiritual que vem mais da antiga filosofia do estoicismo e do platonismo grego do que do evangelho ou das tradições espirituais asiáticas. Espiritualidade não é espiritualismo, não é moralismo, nem legalismo. Nem mesmo podemos identificar espiritualidade com religião.

V - Qual é a diferença?

M – Espiritualidade é ou deve ser a alma da religião, o seu núcleo mais profundo. Seria como um cálice de vinho muito saboroso. A religião é o cálice e a espiritualidade é o vinho. O vinho se bebe naquele cálice ou se pode beber em outro. Para os cristãos, espiritualidade vem da revelação divina. A religião é humana. Foi a forma como as comunidades organizaram um método para se viver a espiritualidade. É um método. Pode ser importante e muito bom, mas não é absoluto nem único. Hoje se fala em espiritualidade transreligiosa e até não religiosa.

V – Voltamos à revolução bolivariana. Por que você a vê assim tão espiritual e o que há nela de novidade em relação às iniciativas revolucionárias anteriores?

M – Como lhe disse, Vanessa, eu tenho a convicção de que toda espiritualidade tem um potencial revolucionário e toda verdadeira revolução, como obra de amor, é revolucionária. Meu mestre, Dom Hélder Câmara, então arcebispo do Recife, dizia que o Socialismo é em si espiritual e correto e pode ser corrompido se se torna totalitário. Então, ele é em si bom e, como tudo o que é humano, pode ser desviado de sua essência mais profunda que é boa. O Capitalismo é em si iníquo e perverso, portanto anti-espiritual. Aprendi isso com ele e estou convencido disso. O que há de novidade no processo bolivariano é que pela primeira vez na história, um comandante da revolução (Hugo Chávez) se afirma claramente como cristão e diz que todo verdadeiro cristão deveria ser revolucionário... Isso é novidade. Numa Molina é um padre jesuíta, teólogo venezuelano. Nesses dias, ele me disse: “Hoje, na Venezuela, a pessoa que melhor fala de Jesus Cristo e com mais profundidade se chama Hugo Chávez”. Essa é a novidade dessa revolução. Esse apelo à participação direta dos cristãos e de todas as pessoas de quaisquer tradições espirituais ou mesmo ateus de busca espiritual para construir juntos esse caminho bolivariano...

Vanessa: Precisamos interromper um momento para nosso intervalo, mas voltamos daqui há pouco com Marcelo Barros sobre bolivarianismo e espiritualidade.

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Marcelo, provavelmente, os padres e pastores daqui não gostam dessa opinião de que o presidente Chávez melhor do que ele. Como você explicaria isso que um homem não formado em teologia possa falar com mais propriedade de Jesus do que os profissionais da religião? Você não está provocando demais?

M: Não é minha intenção provocar ninguém. O que estou dizendo é que hoje a maioria dos exegetas e estudiosos/as de Cristologia estão de acordo que Jesus não falou tanto de si mesmo. Ele falou mais do projeto de Deus no mundo, do que ele às vezes chamou de vontade do Pai e outras vezes de reinado divino (reino de Deus). Ora, penso que muitas vezes as Igrejas falam muito de Jesus como objeto de adoração, como figura (ícone) divina, a qual as pessoas rezam e isso é válido, mas o mais importante é seguir a proposta dele e realizar no mundo o que ele quer que façamos: “Procurem o reino de Deus e sua justiça e tudo o mais virá por acréscimo” (Mt 6, 33). Penso que é isso que, mesmo com suas imperfeições e limitações, à medida que servem à vida dos pobres e os liberta, é isso que o presidente Chávez e o bolivarianismo fazem. O evangelho diz: é pelos frutos que conhecereis a árvore e podereis dizer se ela é boa ou má....

V – Pois, é, mas o cardeal de Caracas desmentiu o presidente e disse que não é verdade que Jesus foi revolucionário..

M – É preciso perguntar o que ele entende por revolucionário. Pode ser que estejamos usando o mesmo termo com sentido diferente. Para mim, o reino de Deus vem transformar todas as estruturas do mundo. Então provoca mesmo um terremoto, uma revolução. No Apocalipse, a última palavra direta dita por Deus, aliás a única que o Pai diz diretamente nesse livro é “Faço novas todas as coisas”. O que é isso se não for uma revolução interior, espiritual, social, cultural, política, tudo, tudo se faz novo... Essa é a proposta de Jesus. Se ele não tivesse sido revolucionário, provavelmente, teria morrido de velho e em uma cama, de alguma doença natural... Esse não foi o caminho dele, como não foi dos mártires latinoamericanos como Monsenhor Romero, a irmã Dorothy Stang no Brasil e tantos irmãs e irmãos, dos quais alguns eu tive a graça de conviver e com alguns até ser amigo.

V – Por que as Igrejas têm tanta dificuldade de compreender isso?

M – Penso que toda religião que se vê como fim em si mesma e perde o horizonte do que na Bíblia chamamos de reino divino, acaba caindo no dogmatismo, na idolatria do poder, dos seus próprios privilégios e aí se torna essencialmente anti-revolucionária. Em 1968, um teólogo americano escreveu um livro que era uma pergunta provocadora. Chamava-se: “Igreja, sacramento ou túmulo de Deus?”[2].

V – E a teologia da libertação, você acha que os teólogos e teólogas estão participando desse processo bolivariano? Será que você não está falando isso no deserto?

M – Sem dúvida nenhuma, muitos companheiros e companheiras estão fazendo teologia a partir das culturas e da vida dos índios, dos negros, do desafio ecológico, da relação de gêneros, homem e mulher, dos lavradores, etc. Em diversos países, à medida que estão colaborando com as realidades locais, estão participando do processo bolivariano. Outros estão cuidando de formar jovens nas universidades e temos tido vários fóruns e congressos sobre teologia e libertação. Pode ser que não se use o nome bolivarianismo. Isso pouco importa, mas o processo está se fazendo sim. E eu garanto a você, como coordenador latino-americano da Associação Ecumênica de Teólogas/os do Terceiro Mundo, eu vou fazer tudo para que a maioria dos companheiros e companheiras, abertos aos sinais dos tempos e ao que o Espirito diz hoje às Igrejas aprofundem esse engajamento crítico, profético, mas de inserção...

V – Como viver concretamente essa espiritualidade no caminho do bolivarianismo?

M – Penso que a primeira coisa é aceitar sujar as mãos e participar ativamente do processo revolucionário, compreendendo-o como missão e mediação do reinado divino no mundo. Em segundo lugar, como discípulos de Jesus, temos sempre de ser profetas e profetizas do amor divino. Isso implica em algumas questões: primeiro a conversão pessoal. Mesmo no meio das ambiguidades e fragilidades que todos nós vivemos, é preciso buscar a coerência interior e a permanente evolução pessoal, passar do egocentrismo para o cosmocentrismo... Assumir o mundo como sua casa e extensão do seu corpo...

V – E no plano diretamente político?

M - É preciso restaurar a dignidade da política. Dom Romero dizia que a política vivida assim espiritualmente é o que há de mais digno e nobre. Temos também de retomar a sacralidade da palavra. Em um mundo no qual a palavra é banalizada pela publicidade e na política, por todo tipo de promessa eleitoreira, é preciso o compromisso de ser verdadeiros e íntegros no que dizemos e fazemos. Finalmente, eu insisto na dimensão ecumênica e macro-ecumênica da revolução bolivariana. O presidente Chávez pode se dizer cristão. É seu direito. Mas, a revolução é leiga e é aberta a todas as culturas, religiosas ou não. O que nos une é o amor solidário.

V – Marcelo, muito obrigado por essa entrevista tão clara e corajosa. Ficamos juntos e disponha sempre do nosso programa.

M – Hasta la Victoria.  


[1] - Vanessa Davies é jornalista, diretora do Correo del Orinoco. Essa entrevista foi dada para o programa “Contra-golpe”da Venezuelana de Televisión (sábado, 26 de maio de 2012, 21 horas). A versão gravada foi aproveitada para o Correo del Orinoco, edição do domingo 27 de maio de 2012. A tradução brasileira foi feita a partir do texto do jornal pela jornalista brasileira Sônia Bonfim.  

[2] - - Cf. ROBERT ADOLFS, Igreja, túmulo de Deus?, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1968.

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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