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Entrevista sobre o Bolivarianismo

Veja a entrevista que dei ao editor do meu livro Para onde vai Nuestra América:

Um novo socialismo é possível!

Entrevista do editor da Ed. Nhanduti com o monge Marcelo Barros

Editor: - Marcelo, em seus escritos e entrevistas recentes, você tem insistido muito sobre o novo bolivarianismo presente nos processos sociais e políticos de vários países sul-americanos e defende a participação da Teologia da Libertação nesse caminho. Por que?

Marcelo: Os movimentos indígenas, negros e camponeses na América Latina têm caráter leigo e são autônomos. Entretanto, em sua formação e história, muitos deles tiveram participação ativa e fecunda de homens e mulheres cristãos que se engajaram nisso a partir de sua fé. Nisso, a teologia da libertação teve uma importância fundamental. É preciso que essa inserção dos cristãos continue e se atualize atualmente apoiando e participando do processo bolivariano na Venezuela, Equador, Bolívia e em todos os nossos países. Insisto nisso para incentivar os irmãs e irmãs teólogos a intensificarmos a nossa inserção.

Você fala em “novo socialismo para o século XXI”. Um militante espanhol protestou: depois do fracasso e das experiências terríveis dos partidos socialistas em países europeus, como ainda ter coragem de falar em Socialismo?

Exatamente pelo fato de que o termo Socialismo foi deturpado e corrompido, é que temos de limpar a palavra e libertar o seu verdadeiro conteúdo. Aqui na América Latina, a fé cristã foi usada para legitimar impérios opressores e o próprio nome de Deus foi usado para fazer guerras. E daí? Por isso, deixaríamos de falar em Deus ou de assumir a fé cristã? Não. Temos de reconhecer a sujeira e libertar dela os conceitos.

O professor Boaventura de Souza Santos afirma: “A América Latina tem sido o continente, onde o socialismo do século XXI entrou na agenda política”[1]. David Choquehuanca, ministro das Relações Exteriores da Bolívia e especialista em cosmovisão andina, rejeita para este processo o título de Socialismo. O que está por trás dessa discussão e qual sua posição sobre isso?

É inegável que em vários países da América Latina, há um processo social novo no sentido de um socialismo de cara diferente do tipo de socialismos que, até agora, o mundo tinha conhecido. David Choquehuanca rejeita o nome Socialismo para a revolução indígena que tomou conta da Bolívia, porque, tanto o Capitalismo, como mesmo o Socialismo que sempre se conheceu, privilegiam (cada qual do seu modo), a questão econômica e o dinheiro. Diferentemente disso, os novos processos sociais no continente devem se basear no conceito indígena do Bom Viver. Penso que é isso que está ocorrendo no novo processo bolivariano na Venezuela e em outros países. É um caminho de natureza socialista, mas a partir dos movimentos populares, das comunidades indígenas e afrodescendentes.      

Você convida as comunidades cristãs e a Teologia da Libertação a participar desse processo, mas parece que, de fato, a Igreja tem se pronunciado contra tanto o processo bolivariano na Venezuela, como o processo atual político do Equador e da Bolívia. Por que?

Antes de mais nada, precisamos esclarecer: não é “a Igreja” que tem se pronunciado contra essas experiências novas. Nos países que você citou, conheço muitas comunidades eclesiais, muitos padres e religiosos engajados e comprometidos com esses processos que formam a Igreja real na América Latina e nunca se pronunciaram contra esse processo. Foram bispos e cardeais que, em algum momento, se pronunciaram negativamente e o fizeram mais sobre alguns governos do que avaliando o processo em si. Não posso dizer porque ou baseado em que fizeram isso porque não me compete falar em nome deles ou interpretar as declarações deles. Mas, não me parece que, ao fazer isso, representem a maioria do povo e mesmo dos católicos do país. Representam mais a sensibilidade e pensar de uma elite. E muitos deles nunca se pronunciaram contra quando os governos eram de direita e corruptos. Agora que são governos populares se manifestam critica e negativamente.

Pode ser, mas a hierarquia da Igreja sempre rejeitou qualquer tipo de Socialismo.

Apesar de todo mundo reconhecer que o Cristianismo primitivo vivia e propunha para as comunidades uma forma de Socialismo. Além disso, nas últimas décadas, vários bispos latino-americanos se pronunciaram profeticamente favoráveis a um novo socialismo. Por exemplo, Monseñor Sergio Mendes Arceo, quando bispo de Cuernavaca (México) fez  várias declarações favoráveis ao Socialismo. Também Dom Hélder Câmara iniciou um diálogo criativo com o Socialismo e em uma carta circular de 1965 defendia o processo do bolivarianismo latino-americano. Isso sem falar em Mons. Oscar Romero, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Tomás Balduíno e tantos outros bispos e pastores que atuaram no mesmo sentido.

Em várias conferências e declarações você tem se pronunciado muito favorável ao presidente Hugo Chávez, personagem controvertida. Você não se expõe demais ao fazer isso?

Pode ser. Sou discípulo de Jesus que nunca ficou neutro diante dos fatos e pessoas. Sempre tomou posição ou denunciando os fariseus e doutores da lei ou como amigo dos publicanos e dos considerados pecadores da época. De fato, tive oportunidade de apresentar a palavra do presidente Hugo Chávez em um encontro por ocasião do Fórum Social Mundial que houve em Caracas (2006) e depois disso o encontrei uma duas ou três vezes. Sempre tive a convicção de estar diante de um servidor do povo, ético e profético em suas propostas. Ele é controvertido porque a imprensa reacionária e burguesa o vê como contrário a seus interesses e inventa contra ele todo tipo de maledicência. Nos anos 50 e 60 fizeram isso contra Martin-Luther King nos Estados Unidos, na Índia dos anos 40, contra o Mahatma Gandhi e aqui no Brasil eu vi fazerem isso contra Dom Hélder Câmara que hoje depois de morto é considerado santo. Mas, não quando vivia e exercia seu  profetismo.

Você tem coragem de comparar esses personagens que citou ao presidente Chávez, alguém que deu um golpe militar, que é militar e que dirige a Venezuela de forma muito centralizadora?

Para mim uma forma de neutralizar os profetas é tirá-los da vida real. Faz-se deles um mito. Eles viram heróis muito diferentes de nós e aí ficam em seu nicho distante e incomodam menos. Ao contrário, todos eram pessoas humanas como eu e você, tinham limitações e defeitos como eu e você temos, mas o importante é que colocaram suas vidas a serviço de uma causa profética e importantíssima. Isso é o que o presidente Chávez e tantos companheiros que participam do processo bolivariano fazem e por isso eu os comparo sim aos profetas e santos seculares de nosso tempo. O que não quer dizer que os endeuso ou os mistifico. São companheiros que se tornam mestres de vida e de compromisso na luta para transformar este mundo.

Seu novo livro “Para onde vai Nuestra América” que a nossa Editora Nhanduti está publicando tem como subtítulo “Uma espiritualidade para o século XXI”. Muita gente estranha esse conceito de “espiritualidade socialista”. O que de fato significa isso?

Espiritualidade significa acessar e viver profundamente o melhor que a pessoa tem dentro de si mesma. Nas tradições religiosas, em geral, isso só se pode viver comunitariamente e não cada um de forma isolada. Aí já existe um processo de socialização. No caso do Cristianismo, acreditamos que a espiritualidade é viver isso deixando-se conduzir pelo Espírito Divino. Ora, ele é o Espírito de amor que sempre nos conduz à comunhão uns com os outros e à construção de um mundo mais justo e fraterno. Assim sendo, o próprio caminho espiritual tem uma dimensão social. Por outro lado, aqui na América Latina, o processo bolivariano que parte das culturas indígenas, negras e da tradição do nosso povo, em sua maioria, de formação cristã, também tem uma dimensão espiritual. Precisamos valorizar e aprofundar essa espiritualidade que, por isso, pode sim se chamar socialista.

Ao “canonizar” como sendo espiritual o processo bolivariano na Venezuela, indígena na Bolívia e cidadão no Equador e o processo emergente em outros países do continente (Uruguai, Peru, Nicarágua, El Salvador, etc), de certa forma, você não propõe equivocadamente uma espécie de nova Cristandade, dessa vez, de esquerda e socialista?

Primeiramente, falar em “Cristandade socialista ou de esquerda”, para mim é como falar em roda quadrada. Cristandade significa um regime cristão dominado pela Igreja e na qual a hierarquia é o poder hegemônico. O Socialismo bolivariano supõe a radicalização da democracia e é para tornar hegemônicas as comunidades populares. Então, uma coisa não tem nada a ver com a outra. Além disso, eu não proponho um socialismo cristão. Proponho os cristãos entrarem e participarem de um processo socialista laico e autônomo e proponho que façamos isso assumindo uma espiritualidade macro-ecumênica que valorize as tradições espirituais indígenas e negras e seja aberta a todas as religiões e tradições espirituais e não apenas às Igrejas cristãs.

Então, como seria essa nova espiritualidade socialista?

Ela deve ser um caminho pessoal no sentido de interior e profundo em cada pessoa, mas, ao mesmo tempo, vivido comunitariamente, ou seja, em grupo, ou na inserção concreta nos movimentos populares. Como toda espiritualidade, consiste em um caminho de conversão pessoal e comunitária, transformação do nosso ser no sentido do que os orientais antigos chamavam de “divinização do nosso ser mais profundo”. Para os cristãos, isso é graça do Espírito. Como instrumentos para isso temos de buscar sempre a palavra de Deus nas escrituras, na comunidade e nos acontecimentos da vida. Temos de aperfeiçoar como uma verdadeira mística a capacidade de escuta e de solidariedade com os mais carentes. A espiritualidade clássica se baseou demais na concepção de pecado, culpa e redenção. Uma espiritualidade nova e socialista não nega que isso exista, mas insiste que o mais fundamental e maior do que tudo é a bênção divina, a sua presença amorosa no universo refazendo a cada momento a criação e portanto temos de viver o cuidado ecológico como prática espiritual. Há muitos outros elementos, mas um dos mais importantes é viver o compromisso social e político como exercício de caminho espiritual, ou seja, de encontro com Deus.

Há algum outro elemento que você percebe hoje que falta em seu livro “Para onde vai Nuestra América”?

Todos os meus livros, se os releio hoje, sempre tenho a sensação de faltar alguma coisa e principalmente em um assunto como esse, a cada dia podemos atualizar e melhorar o que foi dito. Sempre digo às pessoas que me lêem que toda crítica e correção serão benvindas. O livro não tem como finalidade dar um ensinamento acabado, mas puxar o assunto e provocar um aprofundamento que devemos sempre continuar.

Que mais você gostaria de deixar como mensagem para nossos leitores e leitoras?

A espiritualidade se aprende na prática. Atualmente na América Latina, há uma conspiração coletiva e quase unânime da grande imprensa contra o caminho bolivariano. Carlos Mesters dizia das Cebs em 1977 que eram como uma flor bela e frágil. Penso que isso se pode dizer hoje do processo da revolução bolivariana. Ela precisa do nosso apoio e da nossa confiança, como de um assunto de fé. Eu creio nisso como creio que o reino de Deus tem de ter mediações. Mesmo imperfeitamente e certamente com falhas, esse processo é um processo no qual encontramos a presença e ação divinas. Na Venezuela, na Bolívia, no Equador, os governos populares e as comunidades precisam do nosso testemunho de participação. Infelizmente o Brasil ainda não entrou para valer nesse processo. Cabe a nós começar pelas bases e a partir de baixo a tomar esse caminho.

Que o Espírito de amor do universo, presente em todo caminho de justiça e solidariedade os abençoe e os acompanhe agora e sempre. Um abração a todos.


[1] - Cf. BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, A esquerda tem o poder político, mas a direita continua com o poder econômico. In Caros 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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