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Espiritualidade de vigília pascal

                     A Vigília Pascal como espiritualidade sócio-libertadora

                             (Leitura orante e militante de Lucas 12, 32- 48). 

 Nesse domingo, um bispo amigo que coordena uma diocese pobre no interior nordestino, me telefonou, preocupado porque, em sua diocese, percebe nas comunidades polarização cada vez mais forte. Ou as pessoas são consideradas comunistas e sem fé verdadeira ou são de um tipo de espiritualidade restrita a devoções. Penso que encontramos essa mesma tensão nos tempos da comunidade de Lucas (anos 80 do primeiro século). 

Nas primeiras décadas, as comunidades cristãs viviam a espera do reino de Deus (da manifestação visível da vinda de Jesus) como se isso fosse ocorrer de hoje para amanhã. No tempo das comunidades paulinas, se pensava que a vinda do Senhor (a parusia) seria imediata. “O tempo é breve. A figura deste mundo passa!”(1 Cor 7).  Aos tessalonicenses, Paulo se sente obrigado a dizer aos cristãos que não podem deixar as responsabilidades da vida porque o reino de Deus iria chegar imediatamente. Ele mesmo, Paulo, tem uma profissão. Mesmo como apóstolo, continua exercendo e nunca deixa de trabalhar manualmente. Insiste que ninguém deixe de trabalhar para esperar o reino “Quem não trabalha, também não coma” (2 Ts 3, 10).  

Algumas décadas depois, a comunidade de Lucas precisou mudar a concepção da primeira geração cristã que pensava que o Senhor viria logo. As gerações passavam e a vinda definitiva de Jesus não acontecia. As comunidades tinham ficado mais pobres e cada dia mais ameaçadas pelo Império. Por isso, o evangelho lhes recorda as palavras de Jesus aos discípulos no tempo em que, durante a sua viagem a Jerusalém, Jesus tinha se dedicado à formação da comunidade. Jesus os chamava de “meu pequeno rebanho”. (Dom Helder Camara chamava de “minoria abraâmica”).  

Atualmente, vivemos no Brasil uma situação muito dura na qual parece que os ensaios do reino divino que parecíamos estar aprimorando caíram por terra e tudo está se desfazendo. A realidade social e política está retrocedendo a níveis de barbaridade. Nesse momento, parece que, através desse evangelho de hoje, Jesus nos diz: Não tenham medo, pequeno rebanho, mesmo sendo minoria e tão fragilizada, o prazer do Pai é lhes dar o reino, a vitória de um projeto novo de mundo possível... Confiem e aceitem trabalhar no pequeno, na realidade quase invisível de cada base. 

Nesse texto do evangelho de Lucas, trata-se de uma conversa muito íntima de Jesus com o grupo de seus discípulos e discípulas. Não é uma pregação para todo o povo. Não é um Cristianismo de massa. E a primeira recomendação de Jesus é que assumam a pobreza revolucionária que consiste em “confiar na providência divina” (Não tenham medo. O Pai cuida de vocês. Ele lhes dará mesmo o reino, mesmo que esse pareça tardar). No concreto, essa postura se expressa por uma partilha de vida e de tudo o que temos e o que somos: “repartam com os pobres tudo o que têm”. É a pobreza na qual Deus formou o seu povo no deserto. Confiar que o maná que caia do céu cairá no dia seguinte. Não guardar para o amanhã. Partilhar com os vizinhos. Se guardar, apodrece. É o que Jesus mandou fazer no deserto com os cinco pães e dois peixes: repartam e repartindo o pouco que se tem dá para todos. 

Em época de precariedade, desemprego e mesmo em um mundo marcado pelo individualismo, esse tipo de proposta vai contra a cultura vigente e é extremamente difícil. Mas, Jesus pede que, ao menos, prestemos atenção a esse tipo de orientação: confiar em Deus e partilhar. É uma atitude de vigília. Se fôssemos filmar essa cena de Jesus falando aos discípulos , veríamos mais claro que todas elas se passam à noite. De fato, essas sentenças de Jesus lembram muito o clima e a espiritualidade da Vigília Pascal, a noite na qual esperamos na celebração, mas também na vida concreta, o Senhor que vem. É o espírito da Vigília Pascal: recordar a libertação (iniciada no Êxodo) e engravidar a libertação definitiva em uma atitude de confiança em Deus e de postura crítica diante do mundo

O evangelho nos recorda que nós, cristãos, vivemos em uma espécie de noite permanente em uma espera ativa e comprometedora do reino de Deus, ou seja do projeto divino no mundo. É uma longa vigília de Páscoa. As comunidades precisam permanecer atentas e vigilantes. 

Temos de esperar sim a vinda do reino. No entanto, o mundo e a vida não são somente uma câmara de espera sem importância e na qual estamos só aguardando a vinda do reino. Ao contrário, o projeto divino começa a se manifestar à medida que nós trabalhamos e atuamos. Não se espera o Senhor de braços cruzados. 

Só nessa breve passagem do evangelho, Jesus nos propõe três parábolas: 1 . a primeira é a do patrão ou patroa que vai para uma festa de casamento e pode chegar de noite ou de madrugada. 2. A segunda parábola é a do ladrão que ninguém sabe a hora em que assalta a casa. 3. A terceira é a do administrador ou administradora fiel que está pronto a qualquer momento a prestar contas de sua gestão. 

Atualmente essas parábolas podem ser interpretadas pelo lado errado. Não podemos hoje manter a imagem de Deus como um patrão exigente que chega em horas inesperadas e quer encontrar o trabalho bem feito e todos os empregados acordados (como se o trabalhador não tivesse direito ao descanso – que o próprio Deus ordenou na criação e no Êxodo). Não pode ser essa a interpretação dessas parábolas. A única possibilidade é de considerar que o patrão dessa parábola é não Deus e sim o seu reino no mundo, ou seja, é como diríamos hoje: a oportunidade. Essa não espera. Se não aproveitamos, perdemos. Será que sabemos aproveitar corretamente as oportunidades que aparecem para mudar a realidade de nossas vidas e do mundo? 

Precisamos então reler a linguagem “O Senhor tarda” dando ao senhor essa interpretação concreta do reino – da vinda do projeto divino no mundo em sua mediação aqui e agora. O erro fundamental de quem é cristão seria pensar que, como o Senhor tarda, podemos viver tranquilos sem estar preparados (v 45). Parece que as primeiras comunidades cristãs tiveram esse tipo de problema. Era importante novamente acordar o pessoal para a prontidão e a vigilância.  

Assim como no tempo das comunidades de Lucas, hoje, nossas comunidades vivem também a tentação da desesperança e da falta de perspectiva. Talvez, por isso, muitos aderem a movimentos pentecostais como única forma de manter a fé e a esperança. A espiritualidade de vigília pascal é sócio-libertadora porque reúne dois elementos importantes: 1 - uma dimensão pentecostal de fé no Espírito e expectativa do reino e, ao mesmo tempo, 2 - uma opção revolucionária para atuar aqui e agora. 

Se o mundo atual, depois de dois mil anos de Cristianismo continua cada vez mais injusto e desumano é sinal de que as Igrejas cristãs não cumpriram o seu papel de sal da terra e luz do mundo. No começo dos anos 40, em um cárcere nazista, o teólogo e pastor Dietrich Bonhoeffer escreve em uma de suas cartas: “A Igreja só é Igreja quando existe para os outros. Para fazer um início, ela deveria entregar todo o seu patrimônio aos necessitados. Os ministros devem viver exclusivamente dos donativos voluntários da comunidade, talvez além de exercer alguma profissão profana. A Igreja deve participar das tarefas da vida na coletividade humana, não como quem governa, mas como quem ajuda e serve[1].  



[1]- Coletânea de trechos das cartas in CEI, in Missão Profética, Suplemento 9, setembro 1974, p. 18. 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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