“Eu ouvi os clamores do meu povo”
Em 1973, a CNBB tinha como presidente Dom Aloysio Losheidder, solidário com esses bispos do Nordeste. A Campanha da Fraternidade tomava como tema: “Fraternidade e Libertação”, com o lema: “O egoísmo escraviza, o amor liberta”. Mesmo assim, nem em 1973, nem nos dias atuais, a profecia contida no documento pode ser vista como posição da maioria do episcopado do Nordeste, como não seria do Brasil. Basta notar que os 13 bispos nordestinos (do Maranhão a Bahia) que assinaram o documento não chegam a ser nem um terço dos bispos do Nordeste na época. E se pode dizer o mesmo dos religiosos. O fato de serem minoria e terem consciência disso ainda mostra mais a coragem e o valor do documento.
Atualmente, nos meios oficiais da Igreja Católica no Nordeste, esse documento é pouco lembrado e significa, apenas, uma época que mudou. De qualquer modo, ainda hoje, ele lembra uma hierarquia, ao menos, em parte, profética e essa profecia, mesmo com outra linguagem e com novos dados, precisa ser sempre assumida pelas comunidades e pastorais sociais.
Quem conheceu e acompanhou a história da maioria dos bispos e religiosos signatários do documento sabe que tudo o que ali está expresso corresponde exatamente ao pensamento e às palavras de homens como Dom Helder Camara, Dom José Maria Pires e Dom Antônio Fragoso. No entanto, o texto foi assinado por treze bispos e cinco superiores religiosos. Estudiosos como Michael Lowy afirmam que este documento de bispos do Nordeste contém “as declarações mais radicais jamais publicadas por um grupo de bispos, em qualquer parte do mundo” (A guerra dos deuses: Religião e Política na América Latina. Vozes, 2000, p. 145). Libânio considera este documento como o primeiro texto-manifesto da pastoral libertadora da Igreja no Brasil (O que é pastoral . São Paulo: Brasiliense, 1982. p 112.
O certo é que este documento provocou de perto outros documentos do mesmo nível e com conteúdo semelhante. No mesmo 6 de maio de 1973, no qual, no Nordeste, era lançado o documento “Eu ouvi os clamores do meu Povo”, no Centro-oeste, um grupo de bispos, liderados por Dom Tomás Balduíno e Dom Pedro Casaldáliga, lançou - “Marginalização de um povo: grito das Igrejas” (Goiânia, 6 maio de 1973). Meses depois foi a vez dos bispos e missionários do Extremo Oeste, com o seu “Y Juca Pirama. O índio: aquele que deve morrer” (25 dez. 1973). Todos contêm clara denúncia social e política da realidade brasileira e apontam pistas para uma pastoral profética. O documento do Nordeste foi o primeiro no qual bispos e religiosos, signatários do documento, não se dirigiam ao governo. Como pastores, comunicavam-se diretamente com o povo. Esse documento de 1973 representa um divisor de águas para o episcopado do Nordeste.
Atualmente, na Igreja do Nordeste, temos excelentes pastorais sociais. A Igreja Católica, junto a pastores e grupos de outras Igrejas, presta serviço social imenso. No entanto, para muitos bispos e pastores, esses serviços de pastoral social não parecem ser o coração da vida da Igreja, a pupila dos olhos dos pastores, como era para Dom Helder Camara e para os bispos profetas que assinaram o documento de 1973. Na época, ninguém pareceu observar a ausência de assinaturas femininas, mesmo se o documento traz o nome de cinco provinciais ou superiores maiores de ordens masculinas. Em 1973, atuavam no Nordeste várias irmãs, superioras provinciais de congregações femininas ou educadoras conhecidas. Várias delas eram comprometidas com a Pastoral e inseridas com a população mais pobre. Só para citar alguns nomes, a irmã Cecília Pousa era superiora das irmãs Cônegas de Santo Agostinho e na época era presidente regional da CRB NE II (Conferência dos Religiosos/as do Brasil), a Madre Porto, da Congregação das Irmãs Doroteias ou a Madre Ármia Escobar, Doroteia que foi a Roma e participou como consultora da quarta e última sessão do Concílio Vaticano II, como assessora de Dom Helder Camara. Em 1973, nenhuma foi convidada para assinar o documento.
Atualmente, no Brasil, o Conselho Nacional de Leigos/as tem como presidente uma mulher (Marilza Schuina). Várias religiosas participam de organismos de direção na Igreja Católica. Por todo o Nordeste, as comunidades cristãs mais conscientes se sentem chamadas a ser uma Igreja pós-colonial, plural e solidária aos excluídos/as da sociedade. Isso significa superar o caráter centralizador que ainda domina as estruturas da Igreja Católica e de outras denominações e desenvolver prática mais participativa e comunitária da fé para discernir os sinais do reino de Deus na história.
Que as Igrejas sejam capazes de lidar com novas relações de gêneros.. Restabeleçam nos seus ambientes o discipulado de iguais. Só assim, poderão ser, no mundo atual, profecia de parceria justa e complementar entre homem e mulher. Só com essa abertura, podemos retomar a mística do reino de Deus e acolher de coração aberto o que “o Espírito diz hoje às Igrejas” (Ap 2, 5), especificamente a nossas Igrejas locais para respondermos aos apelos de Deus no coração da nossa história.