Festa do povo pobre, Cristo e Rei - Lc 23, 35- 43.
“No olhar da gente, a certeza do irmão: reinado do povo”
e Jesus responde: “- Hoje mesmo estarás comigo no paraíso”.
Quando, na cruz, Jesus responde ao bandido que está ao seu lado: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso”, isso não pode significar que o reino de Deus é o paraíso para onde se vai depois da morte. Não deixa de ser significativo que o primeiro cidadão do reino de Jesus tenha sido um bandido que a tradição cristã chamou de “ladrão” e até de bom ladrão, mas cuja tradução mais exata da palavra grega usada pelos evangelhos seria um subversivo político condenado à morte pelo império.
Alguns exegetas fazem o malabarismo de deslocar o Hoje da frase que o evangelho diz ter Jesus pronunciado: “Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no paraíso” contém a promessa imediata para hoje. Se ele disse: “Em verdade, hoje, eu te digo: estarás comigo no paraíso”, a afirmação ganha outro sentido. Aí paraíso significaria a entrada no reino e o evangelho não teria necessariamente ligado isso com a morte. Seja como for, o fato é que, na cruz, Jesus revela que, mesmo na última hora, toda pessoa pode contar com o perdão divino e a participação no seu reinado. E claro o mais importante é que o Hoje do qual Jesus fala é o hoje da salvação que vai além da referência imediata ao tempo.
A festa de Cristo Rei foi criada em 1925, quando na Europa, a sociedade caminhava para uma época de ditaduras como o Fascismo e o Nazismo em países como Portugal, Espanha, Itália, Alemanha e, a partir daí, o que resultou em uma guerra mundial. Era como se ao proclamar Jesus como Rei se quisesse contrapor outro modo de viver o poder na sociedade. Infelizmente, na própria Igreja, o papa da época fez acordo com o ditador italiano para ser reconhecido como soberano do pequeno estado do Vaticano e entendia isso como símbolo da realeza de Cristo.
Na festa de Cristo Rei de 1963, portanto há mais de 60 anos, em Roma, durante o Concílio Vaticano II, Dom Helder Camara escrevia em uma de suas circulares: “Eu me angustio ao ver que, de certo modo, exploramos a realeza dele para justificar, inconscientemente a nossa. Durante a missa, pensei o tempo todo no pobre Rei, com estopa nas costas e coroado de espinhos...” (25ª Circular – Tomo 1. Volume 1, p. 238).
Atualmente, como já nos anos 1960, sonhava Dom Helder Camara, muitos de nós desejamos que o bispo de Roma, primaz da comunhão católica das Igrejas, se liberte das amarras do poder, renuncie a ser chefe de Estado, justamente para viver com mais liberdade o seu ministério de pastor. Ao ler, hoje, o evangelho da crucifixão, não podemos esquecer que todos os poderes da época, o político e o religioso, se colocaram de acordo para condenar Jesus à morte.
De fato, temos de nos perguntar o que significa no mundo atual, chamar Jesus de rei, mesmo se esclarecemos que ele reina na cruz e que sua forma de ser rei é oposta à forma da nobreza do mundo. No mundo antigo, como a sociedade registrou em livros, a monarquia era a única forma de poder social e político. Reis e rainhas eram senhores e tinham direito às propriedades dos seus súditos e até às suas pessoas como escravos. Mesmo se dizemos que Jesus é ou foi um rei diferente, de fato, com essa imagem, chamamos Jesus de um bom senhor de escravos. E, sem querer, legitimamos uma sociedade de senhores e de escravos. Alguns argumentam: Só o Cristo é o Senhor. Os evangelhos testemunham: Jesus nunca quis escravos. Durante a ceia, diz claramente aos discípulos e discípulas: “Não vos chamo de servos, mas de amigos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas tenho-vos chamado amigos, porque partilhei convosco tudo quanto ouvi do meu Pai” (Jo 15, 15).
Hoje são milhões de pessoas no mundo que vivem como marginais nos mais diversos tipos de cruz inventados pelo mundo para exterminar a multidão de descartáveis que não são necessários ao comércio e ao lucro dos poderosos e da elite econômica que, no Brasil, Jessé de Souza chama de “elite do atraso”, marcada pelo racismo e pela desumanidade monstruosa. Sem dúvida, a melhor forma de celebrar a salvação divina é não legitimar monarquias nem nobrezas humanas e realmente nos colocar como cidadãos e cidadãs do reinado dos povos crucificados aos quais precisamos fazer descer da cruz.
No Brasil de hoje, para o povo mais pobre, rei e rainha são títulos de carnaval: em Pernambuco, rei e rainha de Maracatu. Em alguns estados do Nordeste, recorda os pastoris e reizados que crianças e jovens dançam na época do Natal. Crianças gostam das histórias de reis e rainhas. Até hoje, o Cinema fatura com as aventuras dos tempos antigos e recorda as magias da terra do meio, as tramas do “Senhor do anel”.
Assim, com essas palavras, proclamamos a esperança do poder popular. Somos chamados e chamadas a crer que na luta pacífica dos crucificados e crucificadas do mundo está a salvação que Jesus nos promete e que os movimentos populares chamam de “reinado do povo”.
