Igreja apostólica e Sinodalidade
Neste domingo, no Brasil, a CNBB nos faz celebrar a festa de São Pedro e São Paulo, transferida do dia 29 de junho. O evangelho (Mt 16, 13- 19) é escolhido por causa da palavra pela qual, conforme Mateus, Jesus teria dado a Pedro uma função especial na comunidade dos apóstolos: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”.
Conforme uma tradição que remonta ao menos à segunda metade do século II, o pastor e a Igreja de Roma exercem uma missão de unidade em relação ao conjunto das Igrejas locais. Foi natural que, pouco a pouco, essa palavra de Jesus a Pedro fosse usada para justificar essa missão própria do bispo de Roma, já que outra tradição muito antiga reza que o apóstolo Pedro teria, em Roma, exercido sua missão e sido martirizado.
Independentemente se toda essa tradição tem bases históricas ou evangélicas, atualmente, a maioria das igrejas históricas se dizem dispostas a aceitar um ministério de unidade, realizado pelo bispo católico de Roma, o papa. Só não concordam que esse ministério seja exercido de forma monárquica e a partir de uma sacralização do poder, como se Jesus tivesse inventado ou desejado uma Igreja cujo ministério fosse só masculino e fosse organizado nos ministérios dos padres, bispos, cardeais e papas.
O papa Francisco tem insistido em que nossa Igreja deve ser sinodal. A sinodalidade é o contrário do poder hierárquico institucionalizado. Sínodo significa caminho em comum. E todos/as juntos/as podem superar o clericalismo que o papa denuncia como sendo uma doença da Igreja.
É direito da Igreja apoiar-se na tradição. Mas, historicamente, não se pode pensar que Jesus tenha querido fazer de Pedro o chefe da Igreja Universal. Essa não existia nem na época de Jesus, nem ainda no tempo em que os Evangelhos foram redigidos. Também é claro que Jesus nunca pensou em dar sucessor a Pedro. O padre José Comblin escreveu: “Do texto de Mateus não se pode concluir que Pedro teria um sucessor. (…) Quando o Evangelho foi escrito, Pedro tinha morrido provavelmente um quarto de século antes e o Evangelho não fala em sucessão”[1].
De acordo com os evangelhos, o único apóstolo que teve sucessor foi Judas Iscariotes. De todo modo, podemos descobrir neste texto do evangelho de hoje uma palavra para nos ajudar a viver a fé e a discernir o papel dos pastores na Igreja.
O contexto no qual Mateus situa essa cena que ouvimos hoje no evangelho é de crise. Jesus tinha deixado a Galileia e com a percepção de que sua missão ali havia falhado. Ele não tinha sido aceito nem na sua aldeia de Nazaré. Retirou-se, então, para o território estrangeiro (do outro lado do Mar da Galileia). Sentia-se clandestino e em crise pessoal (poderíamos dizer, em crise de vocação). Por isso, propõe aos discípulos uma avaliação. Faz com os discípulos uma revisão de vida, a respeito do que o povo pensa da sua pessoa e da sua missão. Os discípulos respondem a Jesus que o povo não compreende a sua proposta, nem sabe quem ele é. Então, Jesus pergunta aos próprios discípulos e discípulas: “E vocês, o que dizem a respeito do Filho do Homem?
Esta maneira de Jesus se referir a si mesmo (Filho do Homem) é misteriosa. Ele sempre se dá esse título quando se trata de sua missão e principalmente em momento de crises. Pedro responde em nome de todos: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”(v. 16). Jesus vive a sua vocação de consagrado a tal ponto que só pode ser mesmo “filho de Deus”.
Ao falar assim, nem Pedro, nem a comunidade do evangelho pensavam em Santíssima Trindade, nem estavam afirmando que Jesus é de natureza divina igual a Deus[1]. Para o evangelho, Jesus é o filho de Deus no sentido de ser o Messias, o enviado de Deus ao mundo.
É neste contexto que Jesus chama Simão de Pedro ou pedra. Conforme alguns exegetas, na época de Jesus, o povo tinha o costume de escavar as rochas para daí tirar pedras para construir casas. Era um tipo de pedra mais mole, fácil de ser adaptada como abrigo para quem não tinha casa. Na língua aramaica esses buracos formados nas rochas recebiam o nome de kepha. As pessoas pobres e sem casa se abrigavam nessas cavernas e as usavam como casas. Assim sendo, o nome Kepha pode ser traduzido por pedra ou gruta escavada na rocha, que servia de abrigo para os pobres sem-teto. Assim, a tradução mais literal da palavra atribuída a Jesus seria:
“Tu és Pedro e sobre ti como gruta que serve de abrigo aos mais empobrecidos quero construir a minha comunidade (Igreja)”[2].
A tradição judaica chamava Deus de rochedo ou pedra salvadora que nos serve de segurança e salvação. (Cf. Sl 18, 3 e 32; 31, 4; 61, 4; 95, 3; 144, 1). As comunidades cristãs aplicavam esse mesmo título de pedra ao Co Cristo (Cf. 1 Cor 10, 11 e 1 Pd 2, 6). “No edifício da igreja, ninguém pode colocar outro fundamento que o Cristo Jesus, pedra angular” (1 Cor 3, 11).
Mateus é o único evangelista que usa a palavra ‘Igreja’. No seu contexto, significa a comunidade local: a assembleia dos cidadãos e cidadãs do reino de Deus. Para Mateus, Pedro é símbolo do discípulo a quem o Senhor confia o encargo de “confirmar na fé aos seus irmãos”. Se continuarmos a ler esse evangelho, veremos que Jesus entrega a todos/as e não só a Pedro a missão de testemunhar o Reino. Essa função que, no capítulo 16, Jesus dá a Pedro, no capítulo 18, ele passa a toda a comunidade (Mt 18, 18). De certo modo, somos todos/as pastores e pastoras, chamados/as a viver a fé como rocha de segurança e acolhida para todos os nossos irmãos e irmãs.
Marcelo Barros
[2] ´FREI JACIR FREITAS FARIA, in Roteiros Homiléticos, in Vida Pastoral, julho-agosto 2011, p. 36.