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Incendiar de amor o mundo e a vida - XX Domingo comum C: Lc 12, 49- 57.

Marcelo Barros

Talvez não seja possível estabelecer corretamente o tempo ou o dia, a partir do qual, no Brasil, vivemos uma cultura exacerbada de animosidade, ódio insuflado a cada dia, como se fosse veneno nas veias. A violência que, em nossa sociedade, já era estrutural  se torna endêmica, quase naturalizada.

Diante disso, é importante que das Igrejas cristãs e junto com pessoas de outras tradições espirituais, sensíveis a essa urgência, possamos fortalecer um movimento amplo e inter-religioso de diálogo e  reconciliação nacional, baseado em uma ação espiritual pela Justiça, Paz e não violência ativa, como propunham o Mahatma Gandhi na Índia, o pastor Martin-Luther King nos Estados Unidos e Dom Oscar Romero, Helder Camara, Pedro Casaldáliga e muitos outros irmãos e irmãs na América Latina.

Neste XX Domingo comum do ano C, o evangelho de Lucas 12, 49 a 57 reúne mais algumas sentenças de Jesus que a comunidade do evangelho agrupou neste contexto da crise que Jesus viveu ao deixar a Galileia (a crise galilaica) e na ânsia de formar os discípulos e discípulas.

Na primeira parte desse evangelho, Jesus pronuncia algumas sentenças que podem soar enigmáticas. Afirma que veio lançar fogo à terra e diz que o seu maior desejo é ver o fogo incendiando o mundo. Fala de um batismo, no qual deve ser mergulhado e fica claro que está se referindo à paixão que vai sofrer em Jerusalém para onde está caminhando. O contexto no qual essas palavras se inserem é da preparação para o enfrentamento da cruz, portanto, do conflito e da oposição que a proposta do reinado divino suscita na sociedade e nos religiosos do templo. 

Até hoje, no Catolicismo popular, as pessoas honram São João Batista acendendo fogueiras. Em muitas tradições indígenas, as orações comunitárias se fazem, de madrugada, ao redor do fogo. No Candomblé, pessoas que parecem “de fogo” são consideradas filhas e filhos de Xangô ou Oiá. No Candomblé Iorubá, o ritual do Ajerê, no qual Xangô recebe de Oiá uma panela de brasa e fogo, da qual saem labaredas, mostra que Xangô é o senhor do fogo.

Em toda a Bíblia, o fogo é imagem da manifestação divina. Desde que falou na sarça ardente a Moisés, Deus foi visto como fogo inextinguível, que, de um lado purifica e ilumina, mas também queima.

No Novo Testamento, o fogo é símbolo do Espírito Santo que, em Pentecostes, se manifesta em línguas de fogo. Aqui, Jesus diz que vive um clima de urgência, como diante de um incêndio. Diz que veio para atear o fogo do Espírito. É neste contexto que afirma não ter vindo trazer paz à terra e sim conflito, mesmo entre as pessoas mais próximas. Não porque goste d provocar conflito, mas porque o projeto divino exige das pessoas se posicionarem. Mesmo no conflito que isso provoca, não há alternativa. Não há outro jeito de instaurar a paz verdadeira que, de fato, é o que Cristo quer. Como diz no quarto evangelho, “eu lhes dou a minha paz, mas ela não é igual a paz que o mundo dá” (Jo 14, 27). É uma paz que acarreta opções profundas e só pode existir se for baseada na justiça.

O Mahatma Gandhi consagrou toda a sua vida à defesa da não violência ativa, mas dizia que preferia quem usa a força da violência a alguém covarde ou inativo. Segundo ele, mesmo a violência, que em si mesma, nunca é positiva, é melhor do que o não fazer nada e se omitir. Isso lembra essas palavras de Jesus.

Há algumas décadas, na caminhada libertadora, era comum as pessoas pedirem “paciência histórica”. Isso significava aceitar as limitações de cada etapa da história  e não querer mudar o que não seria possível.

Este evangelho diz que existe uma pressa escatológica, isto é, própria do reinado divino. Não pode esperar. Quando se acende a fogueira, o fogo se ateia e logo se transforma em labaredas. Jesus diz que tem pressa. Em um de seus poemas, Pedro Casaldáliga falava em “saber esperar, sabendo apressar os tempos daquela urgência que não permite esperar”. 

Por isso, Jesus conclui essas afirmações com essa advertência sobre os sinais dos tempos. Se vocês sabem interpretar os sinais do céu e da terra, sabem quando vai chover ou fazer sol, porque não conseguem compreender o tempo em que vivemos? E a comparação termina por um conselho de reconciliação. Ele que começou falando de divisão, termina dizendo: se vocês reconhecem em que tempo estamos vivendo, então, se reconciliem com quem estão divididos porque quando chegar o tempo do julgamento, não haverá mais prazo para a reconciliação. Cada vez mais é urgente que as Igrejas e as religiões do mundo todo deveriam levar a sério essa palavra.

Concluamos esta meditação com um poema do padre Benjamin Gonzalez Buelta, missionário jesuíta em Porto Rico:

 

Batiza-me Jesus

com o sol e a brisa

de tua graça cotidiana,

discreta criação

escorrendo por minha fronte.

 

Submerge meu corpo

na bondade do povo

que corre pelo leito

de seus caminhos fundos,

abertos com seus pés

de trabalho e encontro.

 

Veste-me de branco

ao emergir das águas

respiração contida,

e acolhe-me em teu peito

com o abraço comunitário

de mil braços abertos.

 

Unge-me a fronte

com tua cruz de sofrimento,

e unge-me o peito

com a dor do povo.

Carregarei até o calvário

a cruz de teu mistério.

 

Que se alegre o cosmos

no ruído natural

do metal e a madeira,

e que cantem as gargantas

hoje, dia primeiro

da nova criação.

 

 

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Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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