Marcelo Barros
Talvez não seja possível estabelecer corretamente o tempo ou o dia, a partir do qual, no Brasil, vivemos uma cultura exacerbada de animosidade, ódio insuflado a cada dia, como se fosse veneno nas veias. A violência que, em nossa sociedade, já era estrutural se torna endêmica, quase naturalizada.
Diante disso, é
importante que das Igrejas cristãs e junto com pessoas de outras tradições
espirituais, sensíveis a essa urgência, possamos fortalecer um movimento amplo
e inter-religioso de diálogo e
reconciliação nacional, baseado em uma ação espiritual pela Justiça, Paz
e não violência ativa, como propunham o Mahatma Gandhi na Índia, o pastor
Martin-Luther King nos Estados Unidos e Dom Oscar Romero, Helder Camara, Pedro
Casaldáliga e muitos outros irmãos e irmãs na América Latina.
Neste XX
Domingo comum do ano C, o evangelho de Lucas 12, 49 a 57 reúne mais algumas
sentenças de Jesus que a comunidade do evangelho agrupou neste contexto da
crise que Jesus viveu ao deixar a Galileia (a crise galilaica) e na ânsia de
formar os discípulos e discípulas.
Na primeira
parte desse evangelho, Jesus pronuncia algumas sentenças que podem soar
enigmáticas. Afirma que veio lançar fogo à terra e diz que o seu maior desejo é
ver o fogo incendiando o mundo. Fala de um batismo, no qual deve ser mergulhado
e fica claro que está se referindo à paixão que vai sofrer em Jerusalém para
onde está caminhando. O contexto no qual essas palavras se inserem é da
preparação para o enfrentamento da cruz, portanto, do conflito e da oposição
que a proposta do reinado divino suscita na sociedade e nos religiosos do
templo.
Até hoje, no
Catolicismo popular, as pessoas honram São João Batista acendendo fogueiras. Em
muitas tradições indígenas, as orações comunitárias se fazem, de madrugada, ao
redor do fogo. No Candomblé, pessoas que parecem “de fogo” são consideradas
filhas e filhos de Xangô ou Oiá. No Candomblé Iorubá, o ritual do Ajerê, no
qual Xangô recebe de Oiá uma panela de brasa e fogo, da qual saem labaredas,
mostra que Xangô é o senhor do fogo.
Em toda a
Bíblia, o fogo é imagem da manifestação divina. Desde que falou na sarça
ardente a Moisés, Deus foi visto como fogo inextinguível, que, de um lado
purifica e ilumina, mas também queima.
No Novo
Testamento, o fogo é símbolo do Espírito Santo que, em Pentecostes, se
manifesta em línguas de fogo. Aqui, Jesus diz que vive um clima de urgência,
como diante de um incêndio. Diz que veio para atear o fogo do Espírito. É neste
contexto que afirma não ter vindo trazer paz à terra e sim conflito, mesmo
entre as pessoas mais próximas. Não porque goste d provocar conflito, mas
porque o projeto divino exige das pessoas se posicionarem. Mesmo no conflito
que isso provoca, não há alternativa. Não há outro jeito de instaurar a paz
verdadeira que, de fato, é o que Cristo quer. Como diz no quarto evangelho, “eu lhes dou a minha paz, mas ela não é igual
a paz que o mundo dá” (Jo 14, 27). É uma paz que acarreta opções profundas
e só pode existir se for baseada na justiça.
O Mahatma
Gandhi consagrou toda a sua vida à defesa da não violência ativa, mas dizia que
preferia quem usa a força da violência a alguém covarde ou inativo. Segundo
ele, mesmo a violência, que em si mesma, nunca é positiva, é melhor do que o
não fazer nada e se omitir. Isso lembra essas palavras de Jesus.
Há algumas
décadas, na caminhada libertadora, era comum as pessoas pedirem “paciência histórica”. Isso significava
aceitar as limitações de cada etapa da história
e não querer mudar o que não seria possível.
Este evangelho
diz que existe uma pressa escatológica, isto é, própria do reinado divino. Não
pode esperar. Quando se acende a fogueira, o fogo se ateia e logo se transforma
em labaredas. Jesus diz que tem pressa. Em um de seus poemas, Pedro Casaldáliga
falava em “saber esperar, sabendo apressar os tempos daquela urgência que não
permite esperar”.
Por isso,
Jesus conclui essas afirmações com essa advertência sobre os sinais dos tempos.
Se vocês sabem interpretar os sinais do céu e da terra, sabem quando vai chover
ou fazer sol, porque não conseguem compreender o tempo em que vivemos? E a
comparação termina por um conselho de reconciliação. Ele que começou falando de
divisão, termina dizendo: se vocês reconhecem em que tempo estamos vivendo,
então, se reconciliem com quem estão divididos porque quando chegar o tempo do
julgamento, não haverá mais prazo para a reconciliação. Cada vez mais é urgente
que as Igrejas e as religiões do mundo todo deveriam levar a sério essa
palavra.
Concluamos esta
meditação com um poema do padre Benjamin Gonzalez Buelta, missionário jesuíta
em Porto Rico:
Batiza-me Jesus
com o sol e a
brisa
de tua graça
cotidiana,
discreta
criação
escorrendo por
minha fronte.
Submerge meu
corpo
na bondade do
povo
que corre pelo
leito
de seus
caminhos fundos,
abertos com
seus pés
de trabalho e
encontro.
Veste-me de
branco
ao emergir das
águas
respiração
contida,
e acolhe-me em
teu peito
com o abraço
comunitário
de mil braços
abertos.
Unge-me a
fronte
com tua cruz de
sofrimento,
e unge-me o
peito
com a dor do
povo.
Carregarei até
o calvário
a cruz de teu
mistério.
Que se alegre o
cosmos
no ruído
natural
do metal e a
madeira,
e que cantem as
gargantas
hoje, dia
primeiro
da nova
criação.