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Jesus conosco nas tempestades da vida

XIX Domingo Comum: Mt 14, 22 - 33. 

                                                                           Jesus conosco nas tempestades da vida

             Neste XIX Domingo comum do ano, lemos o evangelho de Mateus 14, 22- 33. Conforme esse evangelho, depois de alimentar o povo no deserto, Jesus vai orar na montanha e manda os discípulos atravessar o lago para o outro lado. 

                 O pano de fundo desta página é o livro do Êxodo. Lá, depois de celebrar a ceia pascal, o povo hebreu teve de enfrentar o exército do faraó nas águas do mar Vermelho que se abriram para salvar os escravos fugidos e sepultar os opressores. Agora, no evangelho, Jesus realiza novo Êxodo. Alimenta a multidão como refeição pascal e, depois, manda os discípulos atravessar o mar da Galileia. 

Para as primeiras comunidades cristãs, essa travessia tem duas implicações. A primeira é que Jesus manda “passar para o outro lado”. E no caso do lago de Genesaré, passar para o outro lado é ir ao território pagão, terra dos gentios, que tornava todos eles impuros perante a lei judaica. Ir ao outro lado significa viver a vocação de ir aos outros, aos diferentes. Significa a abertura intercultural e interreligiosa. Essa é a implicação do “passar para o outro lado”, seja na época em que o evangelho foi escrito, seja, em nossos dias... O papa propõe “Igreja em saída”. Na América Latina significa que nossa missão é a de inserção no mundo e não o eclesiasticismo interno. 

A outra implicação é que nesse caminho para o outro lado, se tem de atravessar o mar revolto. É a cena da tempestade noturna no lago. Na Bíblia, o mar é sempre símbolo das forças do mal. Enfrentar o mar é lutar pela vida que está em risco. 

O evangelho diz que Jesus mandou (o texto grego chega a sugerir que forçou) os discípulos e discípulas a entrar no barco para atravessar um mar de noite e em tempo de tempestade. Ao ouvir isso, pensamos em tantos pastores, irmãos e irmãs nossos que, nos nossos dias,  obedecem a essa ordem de Jesus. Aceitam viver a fé, inseridos nas lutas do mundo e no enfrentamento às tempestades sociais e políticas do país. Pensamos nos irmãos e irmãs que trabalham junto à população de rua, junto a migrantes e a comunidades em situação de riscos. 

Infelizmente, ainda há muitos bispos, padres e pastores que não aceitam. Preferem ficar aproveitando o prestígio como se Jesus tivesse aceitado ser um messias milagreiro que multiplica pães e encanta o povo, distraindo-o da sua miséria e suas carências. Conforme o evangelho, Jesus não quis esse tipo de religião. Partilhou os pães com a multidão faminta, mas ao ver a reação das pessoas e mesmo dos discípulos que queriam fazer dele um rei, Jesus se separou de todos, despediu o povo e obrigou os discípulos a se meterem nas tempestades da vida e das noites do mundo. 

Ao contar essa mesma passagem, o 4º Evangelho sublinha uma espécie de divisão ou ruptura entre Jesus e a comunidade dos discípulos. Eles também queriam fazê-lo rei. (Até hoje a Igreja mantém a festa e a devoção ao Cristo-rei). O evangelho sublinha que Jesus força os discípulos a entrarem na barca e ele não entra. Nem mesmo depois de aplacar a tempestade. O evangelho de João diz que a barca chegou do outro lado do lago, mas Jesus não estava na barca dos discípulos... Pois é, precisamos nos perguntar se Jesus está sempre na barca da nossa Igreja mesmo quando essa se afasta claramente do evangelho e da proposta de Jesus. 

 

Até hoje, o lago da Galileia é famoso por suas tempestades fortes e perigosas.  Conforme o evangelho, em uma dessas noites de tempestade, os discípulos de Jesus correram grande risco. Nela, o evangelho viu um sinal forte da intervenção salvadora de Deus, através de Jesus. Jesus vindo de madrugada, andando sobre as águas para salvar os discípulos na barca é uma parábola sobre como Ele se manifesta em meio às tempestades das noites da nossa vida, sejam as tormentas interiores, sejam as tempestades sociais e políticas de um mundo no qual, como afirma o papa Francisco, a desigualdade é a raiz de todos os males sociais (Evangelii Gaudium, 202). 

Antigamente, no deserto, Deus agiu em favor do povo hebreu, lhe dando o maná como alimento e propondo a partilha como forma de organizar a economia. Assim também, o evangelho mostra que Jesus também alimentou a multidão no deserto e propôs a partilha como modelo de organização social. Isso o fazia correr perigo e ele teve de sair de lá, por motivo de segurança. A travessia do mar representa o enfrentamento às forças sociais que se opõem à partilha.  

Em nossos dias, o papa Francisco propõe a Economia de Francisco e Clara, como caminho de economia solidária. No Brasil, as forças democráticas enfrentam uma elite que não aceita nenhuma medida econômica na direção da partilha e da justiça. E há muitos religiosos, católicos e evangélicos, que legitimam essa iniquidade e em nome de Deus.  

 

            A espiritualidade profética tem de assumir o enfrentamento com os poderes inimigos da partilha. O barco que enfrenta o mar é imagem da comunidade profética, que enfrenta os poderes da dominação e da morte. Mateus conta essa história falando três vezes em “medo”, “angústia” e “pavor”. Isso revela a realidade que a comunidade cristã em sua época estava vivendo. Quando os discípulos gritam de medo, Jesus diz: “Tenham coragem. Sou eu. Não tenham medo”. É a mesma palavra que, antigamente, no Êxodo, Deus disse ao povo, que estava diante do mar e via o exército do faraó chegando para prendê-los. É a palavra que temos de ouvir hoje. 

A reação de Pedro de pedir a Jesus para abandonar o barco e ir ao encontro dele por cima das águas é simbólica. Às vezes, em meio às tempestades da vida, há pessoas que têm essa mesma tentação. No lugar de ficar no barco, como todo mundo, enfrentando a tempestade, há pessoas mais piedosas do que as outras que querem um milagre para si. Dizem como Pedro: “Manda-me ir para junto de você por cima das águas”. Quando Pedro vai e afunda, Jesus lhe diz que a fé dele era fraca. 

Será que Jesus estava se referindo ao fato de que Pedro teve medo de caminhar sobre as águas ou será que, com essas palavras, afirmava que a fé de Pedro era pequena por ter abandonado o barco e deixado os outros enfrentando o mar, enquanto ele procurava abrigo seguro junto a Jesus? 

              Certamente, o projeto de Jesus era os discípulos ficarem juntos para enfrentar a tempestade e não tanto socorrer um deles. A cena de Pedro que se sente afundar no caminho entre a barca e Jesus que o chamava é símbolo de que a insegurança e o afundamento no mar do mundo pode atingir até os ministros que representam a comunidade. Como Pedro, os pastores podem também se sentir afundando, no meio do caminho para o Cristo, quando a tempestade se torna mais ameaçadora.

 

Atualmente, muitos padres, bispos e pastores se sentem fragilizados e hostilizados dentro da própria comunidade de fé, ao propor uma espiritualidade profética contrária a uma religião ritualista e devocional alheia ao intento de construir um mundo novo de acordo com o projeto divino. 

           Na maioria das vezes, fomos educados a pensar em Deus no silêncio, na paz e associar a presença de Deus à claridade e à beleza de uma natureza tranquila. Comumente, não pensamos Deus presente nas tempestades da vida e na escuridão de nossas noites do espírito. Essa palavra do evangelho revela que Jesus traz a presença divina para o coração de nossas angústias, de nossos medos e nossas noites escuras.  

Pedro chama Jesus de “Kyrios”, “Senhor”. Na época,  isso era  subversivo. Só o imperador de Roma se intitulava de Kyrios. Ao dar esse título a Jesus, os primeiros cristãos mostravam não aceitar o absolutismo de nenhum poder humano. Só Jesus é o Kyrios, senhor da nossa vida.  Em nossos dias, esse título que, no mundo antigo, tinha conotação subversiva e transformadora tomou um aspecto problemático na linha do patriarcalismo. Deus acabou sendo visto como patriarca macho (senhor JWHW) e Jesus é senhor. Culturalmente, esse modo de ver Deus acaba colaborando com a marginalização da mulher. Por isso, é importante e urgente libertar Jesus de qualquer linguagem que legitime o patriarcalismo. 

             Como fez aos discípulos, Jesus nos manda passar para o outro lado, isso é, enfrentar o desconhecido. Para a comunidade do evangelho, passar para o outro lado significava se abrir aos estrangeiros, os não crentes, que moravam na outra margem do lago. O que significa isso para nós hoje? Pode significar abrir nossas vidas e nossas formas de crer às religiões originárias que hoje sofrem preconceitos e até perseguições. Pode significar abrir nossa fé a novos horizontes e no diálogo com o mundo de fora. 

Precisamos receber a coragem de Jesus para enfrentar a tempestade dos faraós de hoje em dia e testemunhar o projeto divino em meio a uma sociedade que vai na direção contrária.  Que nossas eucaristias possam ser alimento que nos deem força nesta travessia.  

 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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