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Lutar contra o mal onde ele estiver

IV Domingo comum: Mc 1, 21- 28. 

                                                              Libertação supõe luta contra o mal onde ele estiver

            Neste IV Domingo do tempo comum, o evangelho de Marcos 1,21-28 continua a narrativa que lemos no domingo passado. Depois de reunir a sua comunidade e anunciar que o projeto divino já viria se realizar, Jesus começa o seu trabalho na Galileia. Marcos apresenta isso ao retratar como exemplo um dia de atividades de Jesus em Cafarnaum. Ele começa por ir à sinagoga, como todo bom judeu faz no sábado. Sim: Jesus começa a sua atividade pública no dia que é sagrado e no local sagrado: a sinagoga. 

Ali, ele ensina. A primeira observação do evangelho é que as pessoas ficam admiradas com o ensino de Jesus e com a diferença entre esse e o dos escribas. O texto diz que Jesus ensina como quem tem autoridade e não como os professores da Bíblia na sinagoga. Que autoridade seria essa? O texto explica: ali na sinagoga estava alguém dominado por uma energia negativa. A tradução do padre André Chouraqui diz: alguém que tem sopro contaminado. As traduções comuns falam: um homem possuído pelo demônio. Essa é a primeira coisa estranha: Jesus começa a sua ação libertadora por entrar em confronto com alguém endemoniado e a pessoa possuída pelo espírito mau não está no mercado, ou em local de pecado. Está na sinagoga, isso é, no espaço sagrado de escuta e meditação da Palavra de Deus. O que fazia um demônio em uma sinagoga, lugar sagrado de discussão de textos bíblicos? Pior ainda, o tal homem endemoniado reage a Jesus gritando: - O que há entre nós e ti, Jesus de Nazaré? Vieste para nos prejudicar. Sei quem tu és: o santo de Deus. 

Quem é este nós de quem o tal homem fala? Nós quem? O demônio e quem mais? Seria o tal demônio um dos escribas? Um dos professores da Bíblia, dos quais o evangelho já colocou Jesus em confronto? Seja como for, Jesus o manda se calar. O demônio grita e em seu grito reconhece Jesus como profeta. Santo de Deus tinha sido o mesmo título dado ao profeta Elizeu. No entanto, Jesus faz o homem se calar. Não aceita que o demônio diga quem ele é. E o expulsa daquele homem. As pessoas ficam admiradas com o ensino de Jesus que tem poder sobre os espíritos maus. 

 Em nossos dias, podemos falar do homem possuído pelo demônio como alguém que sofre de histeria, epilepsia ou alguma enfermidade neurológica. Podemos ver a ação de Jesus como curadora. No entanto, o evangelho sublinha outra coisa: que o ensinamento de Jesus tem autoridade, porque ordena e até as energias negativas lhe obedecem e saem das pessoas. O ensino de Jesus tem autoridade, porque liberta as pessoas de qualquer forma de escravidão. O evangelho é evangelho, porque faz as pessoas se libertarem de tudo o que as oprime. 

Hoje, ao ler este evangelho, podemos nos perguntar como fazer com que nossas Igrejas não sejam como aquela sinagoga de Cafarnaum que recitava os textos sagrados, mas era, exatamente ali, no ambiente sagrado que o inimigo se manifestou. E se manifestou diante da palavra de Jesus que veio para libertar a todos e todas. A primeira ação de Jesus liberta as pessoas da religião que não se compromete com a vida e com a libertação integral do ser humano. É justamente por isso que a atividade com a qual Jesus testemunha o projeto divino no mundo começa no espaço sagrado de uma sinagoga.

 

Ainda em nossos dias, há um tipo de culto e de atividade religiosa que consiste em gritar e proclamar o nome de Deus e de Jesus, mas não vai além disso. Mesmo se o que o homem possuído pelo mal diz é verdade e é bom: Tu és o santo de Deus, Jesus ordena que se cale. O evangelho não consiste em gritar louvores a Deus. Consiste em realizar a libertação que Jesus veio trazer em nome de Deus. Como em um comentário, exprime o padre Francisco Cornélio Freire Rodrigues:  “Jesus nos convida a ser junto com ele pessoas que gerem vida, sem permitir que os diferentes tipos de escravidão continuem oprimindo as pessoas que caminham ao nosso lado. Participar de sua convicção de ter uma missão e ser responsável de uma causa que é a causa do Pai”[1].

              Quando eu era criança, antes do Concílio Vaticano II, em frente à minha casa, havia um convento de religiosas que eram muito amigas de minha mãe. E ela me levava às novenas, horas santas, via-sacras e bênçãos do Santíssimo Sacramento que, na Igreja Católica daquela época, eram as devoções nossas de cada dia. Com o Concílio Vaticano II, isso mudou. Nas paróquias e conventos, nos anos seguintes ao Concílio, o centro de toda a vida comunitária era a eucaristia e em torno da eucaristia, os grupos bíblicos e meditação da Palavra, assim como partilha de vida e abertura amorosa aos problemas da humanidade. Desde os anos 1990, o devocionalismo de antes do Concílio voltou e hoje as paróquias são de novo dominadas pelo tipo de Catolicismo devocional da época de nossas avós. Só que naquela época aquele tipo de religião de devoções era inocente. Hoje, não é. É arma de resistência e combate às propostas de renovação da Igreja feitas pelo papa Francisco. E tanto os grupos de Igrejas pentecostais que sustentam no Congresso bancadas do boi, da bala e da Bíblia, esse tipo de Catolicismo, mesmo se de forma mais disfarçada, abre as portas para as mesmas energias negativas, ou como diz o evangelho de hoje, os mesmos demônios se apossarem do homem e da mulher que hoje vão aos templos para viver o sagrado. 

Há poucos dias, em São Paulo, ocorreu o congresso dos 40 anos do Movimento dos/das Trabalhadores/as sem-Terra (MST). Esses 40 anos do movimento popular mais importante do Brasil e, talvez, do mundo, representa uma ação permanente de combater o maligno que se expressa na concentração de terras no Brasil, no latifúndio e nos males que hoje realizam as empresas mineradoras e os agrotóxicos. Unamo-nos a esses irmãos e irmãs que continuam a ação libertadora de Jesus contra as forças do mal. 

De fato, a ação de Jesus ao libertar a pessoa humana das energias negativas pede de nós hoje o compromisso de atualizar a ação curadora e transformadora de Jesus em nossa ação pessoal e comunitária. Quanto mais vivemos na contemplação de Deus como Amor e nos identificamos com o Cristo vencedor do maligno nas sinagogas e Igrejas de hoje, mais mergulhamos no compromisso de nos transformar a nós mesmos em pessoas mais humanizadas e amorosas e de transformar esse mundo cada vez mais desigual e injusto em uma terra na qual todos os humanos sejamos irmãos e irmãs e cuidadores/as amorosos da Terra, nossa casa comum. 



[1] - Cf. https://www.fiquefirme.com.br/reflexao-para-o-4-domingo-do-tempo-comum-mc-121-28

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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