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Martas, Marias e a escolha da melhor parte.

Martas, Marias e a escolha da melhor parte.

 Marcelo Barros

Neste XVI Domingo comum do ano C, o texto do evangelho – Lucas 10, 38- 42 contém a cena na qual Jesus se hospeda na casa de suas amigas de Betânia: Marta  e Maria.

Em todo o capítulo 10, o evangelho de Lucas mostra Jesus em seu caminho para a Páscoa em Jerusalém, isso é para a cruz. Nessa viagem, Jesus vai formando os discípulos e discípulas. Neste capítulo, o evangelho tinha apontado dois elementos fundamentais da missão dos discípulos e discípulas de Jesus: 1) a itinerância, (vão dois a dois pelos caminhos), 2) a solidariedade como base da missão (a parábola do samaritano que escutamos domingo passado). Agora, o evangelho nos apresenta o terceiro elemento da missão: a hospitalidade. Esse pequeno episódio que conhecemos como a história de Marta e Maria lembra a espiritualidade do acolhimento, tão presente em toda a Bíblia, desde Abraão e tão viva no meio do povo brasileiro e dos povos tradicionais. Quando a gente acolhe alguém em casa, está sempre acolhendo a Deus em sua vida. E Marta e Maria são discípulas como exemplos ou profecias de acolhida. Ao acolher o outro, acolhem o próprio Jesus.  Em outro lugar, ele afirma: “Quem vos recebe a mim recebe”.

Depois de contar a história do samaritano que serve ao homem ferido, agora o evangelho conta a história de Marta que também serve, dessa vez, ao próprio Jesus. O evangelho fala de Marta e Maria como símbolos ou figuras de grupos cristãos na comunidade cristã. Ao contar essa história ocorrida na viagem de Jesus a Jerusalém, Lucas está tratando, de fato, de um problema das comunidades cristãs na sua época (anos 80). Chama Marta de diaconisa, já que serve à mesa. O livro dos Atos (6, 2- 4) conta que dirigentes das comunidades opunham a diaconia (o serviço) da mesa à diaconia (serviço) da Palavra. Por trás dessa aparente oposição, havia um conflito cultural entre os cristãos de origem judaica e os de cultura grega. A solução imaginada foi escolher ministros só para servir à mesa. Nos capítulos seguintes do livro dos Atos, os escolhidos para este serviço estão começando também a servir à Palavra. Lucas, discípulo de Paulo, é ecumênico com a cultura grega[1]. O evangelho pede uma unidade interior nas pessoas.

Em um livro chamado “O caminho que nos transforma”, Georges Wierush  Kowalski mostrou que essas mulheres (Marta e Maria) simbolizam em realidade às Igrejas. Assim, Marta representaria as Igrejas domésticas, cuja maior tarefa era acolher, resolver os conflitos internos, garantir a unidade entre as comunidades e presidir as reuniões de oração. Maria seria o símbolo das Igrejas missionárias, nas quais os profetas são portadores da palavra de Deus, depois de havê-la escutado e meditado[2]. Essa interpretação significaria que, nas origens do cristianismo, as mulheres permaneciam seguindo Jesus em funções de primeira importância[3]. E que esse episódio não pode ser interpretado como, tradicionalmente, ocorreu nas Igrejas como oposição entre dois modelos de vida: ação e contemplação. Nada a haver com isso. Maria tem função profética – escutar a Palavra e Marta a função de diaconisa – acolher e servir.

Assim, Lucas apresenta Marta e Maria na tarefa de acolher e de abrir sua casa a Jesus e a seus companheiros e companheiras. De acordo com o texto, Maria faz o que os rabinos aconselhavam os discípulos a fazerem. Os textos rabínicos dizem: “Que tua casa seja espaço de reunião para os sábios. Agarra-te à poeira dos pés deles e bebe de suas palavras como quem está com sede”(Mishna Abot, 1, 4). A novidade é tratar-se de uma mulher.

O fato de uma mulher ser ministra da Palavra subverte a tradição. No começo dos anos 1980, Barbra Streissand faz o filme Yentl. É a história de uma moça, filha de um rabino do norte da Europa que se finge de homem para estudar a Bíblia e se tornar rabino. Hoje, o Judaísmo liberal tem mulheres rabinas. No entanto, não era essa a tradição. Até hoje, judeus ortodoxos, assim como também o magistério católico, impedem as mulheres de exercerem ministérios ordenados. Jesus é um rabino que aceita discípulas. Jesus toma posição. Defende a liberdade e igualdade feminina. Maria estava na mesma atitude que Paulo aos pés do rabino Gamaliel (Cf. At 22, 3). A função tradicional de dona de casa não é a única função possível para uma mulher. Mulher não é só para trabalhos domésticos. Tem direito a sentar-se aos pés do mestre e ser discípula livre e ativa.

Há tradutores desse evangelho, segundo os quais Jesus teria dito a Marta: “poucas coisas são necessárias”, como se tivesse se referindo à comida: bastam poucas coisas. Para que tanto trabalho? Mas, a tradução correta do grego diz: “uma só coisa é necessária”. E Jesus deixa claro: “Maria escolheu a melhor parte!”

Nessa pequena história, duas vezes, Lucas cita o título “Senhor”. Era o modo próprio como as primeiras comunidades cristãs se referem ao Senhor Ressuscitado. Hoje, com a preocupação do discipulado de iguais entre homens e mulheres, essa expressão Senhor parece patriarcal e masculina demais. No tempo dos evangelhos, não havia essa relação. Senhor era o título do imperador (Kyrios) e chamar Jesus de Senhor era o modo subversivo de dizer que um judeu crucificado se tornava a referência do reino de Deus no mundo. É essa senhoria que ele partilha conosco: homens e mulheres no discipulado de iguais.

 

 

 

 



[1] - ISIDORO MAZZAROLO, Marta e Maria, diferentes níveis do conflito, in Estudos Bíblicos, jan/mar 2011, p. 61.

[2] - GEORGES W. KOWALSKI, La route qui nous change, Cana, 1982, pp 190.

[3] - SUZANNE TUNC, También  las mujeres seguían a Jesus,  Sal Terrae,  Cantabría, 1999, p. 43- 44.

 

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Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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