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Meditação bíblica, domingo, 07 de agosto 2016

Viver despertos

Se fôssemos filmar essas cenas do evangelho dessa semana, veríamos mais claro que todas elas se passam à noite. 

De fato, essas sentenças de Jesus que ele pode ter dito em situações e momentos diferentes, Lucas juntou em um só texto. E são palavras que me lembram muito a Vigília Pascal, a noite na qual, cada ano (no Sábado Santo à noite ou no domingo da Ressurreição de madrugada a dentro), nós, cristãos de Igrejas antigas, esperamos e ansiamos pela vinda do Reino de Deus. Essa espera é nutrida, em primeiro lugar, na vida concreta, pelo nosso modo de viver, mas é importante treinar essa espera e expressá-la na celebração. Na Igreja antiga, cada celebração sempre se concluía por uma invocação: Marana Tha, Vem, Senhor, vem... Hoje, em nossas celebrações, essa dimensão da expectativa tem diminuído muito. Mas, a Vigília Pascal ainda mantém essa espiritualidade da espera do Senhor ressuscitado que vem ao nosso encontro e nos traz o reino de Deus já acontecendo aqui e agora (ao menos em parte). 

 Nesse trecho do evangelho, Lucas parece dizer que nós cristãos vivemos em uma espécie de noite permanente esperando a vinda do reino. É uma longa vigília de Páscoa. As comunidades precisam permanecer atentas e vigilantes, Entretanto, ao mesmo tempo, Jesus ou o Espírito Mãe do reino pode tardar.

Essa expressão "pode tardar" indica que a comunidade de Lucas já não vive mais aquela mesma cultura das comunidades dos anos 50 e mesmo do evangelho de Marcos - No tempo das comunidades paulinas, se pensava que a vinda do Senhor (a parusia) seria imediata. “O tempo é breve. A figura deste mundo passa!” (1 Cor 7). Os anos se passaram e ele não veio, ao menos do modo como era esperado pelas comunidades primeiras  Então, Lucas precisou mudar essa concepção de que a vinda do reino e a manifestação última de Jesus ao mundo ocorreria logo.  Lucas insiste que, enquanto o reino não chega, o cristão tem de se engajar na história, ao mesmo tempo, sem deixar de esperar.

É provável que essa situação de que o reinado divino, o projeto que Deus tem para o mundo não se manifestou ainda e parece que quem está vencendo é o mundo e o mal (basta pensar no Brasil atual e na crise política que vivemos), isso já tinha aparecido assim para Jesus. Ele tinha anunciado o reino como algo imediato e pouco a pouco teve de descobrir que não é assim. E isso o fez entrar em crise. Inclusive a se perguntar: será que foi mesmo Deus que me inspirou as palavras que antes eu falei quando disse que o reino de Deus está chegando?

Por isso, alguns exegetas interpretaram esses capítulos de Lucas, 11- 13, como expressões de uma tal “crise galilaica”, (galilaica porque corresponde ao final do tempo da missão de Jesus na Galileia). Nesse momento de crise, Jesus se interroga sobre como prosseguir sua missão de testemunha e arauto do reinado divino. Ele constata que o que tinha feito antes, de certa forma, fracassou. E não sabe bem o que fazer agora.

Contemplar Jesus em crise de vocação quando nos sentimos frágeis e inseguros pode ser consolador, não para nos acomodar naquilo que parece negativo e sim para nos fazer sentir que estamos mais juntos e, como diz o salmo: “Ele conhece nossa condição e se lembra de que somos barro” (Sl 103, 14).

A saída para essa questão é a gente descobrir que temos sim de esperar, mas de uma forma ativa e que apresse aquilo que esperamos. Temos de esperar sim a vinda do reino. No entanto, o mundo e a vida não são pode ser somente uma câmara de espera sem importância e na qual estamos só aguardando a vinda do reino... Por isso, as comunidades recordaram algumas parábolas de Jesus que ensinam: temos de continuar trabalhando e atuando. Não se espera o Senhor de braços cruzados. Só nessa breve passagem, são três parábolas: a primeira é a do patrão ou patroa que vai para uma festa de casamento e pode chegar de noite ou de madrugada. A segunda parábola é a do ladrão que ninguém sabe a hora em que assalta a casa. A terceira é a do administrador ou administradora fiel que está pronto a qualquer momento a prestar contas de sua gestão. Então, o erro fundamental de quem é cristão seria pensar que o Senhor tarda e por isso podemos viver tranquilos sem espera (v 45). Vivemos este problema na nossa comunidade. Era importante novamente acordar o pessoal para a prontidão e a vigilância. 

- Hoje, muitas vezes, vivemos os mesmos problemas. No Brasil dos anos 80 e começo dos anos 90, muitas comunidades cristãs viveram uma crise de esperança e de perspectiva. Talvez, por isso, muitos cristãos, até irmãos e irmãs que eram de comunidades de base aderiram a movimentos pentecostais. Foi uma forma de retomar a esperança. É certo que a fé cristã precisa unir uma dimensão pentecostal de fé no Espírito e expectativa do reino e, ao mesmo tempo, uma opção revolucionária para atuar aqui e agora.

 No fim dos anos 70, em Goiás, lavradores de círculos bíblicos e grupos do Evangelho publicaram pela editora Tempo e Presença: “Estudos bíblicos de um lavrador”. Um dos textos bíblicos comentados foi essa parábola e os lavradores escreveram o seguinte: “Este evangelho mostra como Deus age. Quanto mais a gente consegue da vida, mais tem que coloca-la a serviço de todos. Mas, na nossa realidade, não tem sido assim. Quanto mais a pessoa tem, mais quer para si. (...) Nós todos somos empregados de Deus”.

Outro lavrador disse: 

“Esses empregados desonestos não são mesmo os cristãos? A Igreja toda não aprece que largou o serviço que devia ter feito há muito tempo? Por que, depois de tantos anos, este mundo chamado cristão, está ainda cheio de tanta injustiça e desigualdade?”[1].

No começo dos anos 40, em um cárcere nazista, o teólogo e pastor Dietrich Bonhoeffer escreve em uma de suas cartas: “A Igreja só é Igreja quando existe para os outros. Para fazer um início, ela deveria entregar todo o seu patrimônio aos necessitados. Os ministros devem viver exclusivamente dos donativos voluntários da comunidade, talvez além de exercer alguma profissão profana. A Igreja deve participar das tarefas da vida na coletividade humana, não como quem governa, mas como quem ajuda e serve”[2]. 

Acho que esse evangelho do versículo 45 em diante não deveria ser lido nas comunidades. (De fato, a liturgia prevê a versão breve que termina antes). Essa história do senhor que chega de repente e começa a torturar o empregado era a realidade da época de Jesus e dos evangelhos, mas não pode continuar a ser colocada como imagem de Deus. Nem a gente tem de ser fiel porque se não for, Deus vem e nos castiga. Acho importante dizer isso. Temos de mudar essa imagem de Deus. O evangelho tem de ser uma boa noticia e não uma ameaça para a vida das pessoas.


[1] -  OS ESTUDOS BÍBLICOS DE UM LAVRADOR, Tempo e Presença, suplemento n. 25. agosto de 1979, pp. 50 ss.

[2] - Coletânea de trechos das cartas in CEI, in Missão Profética, Suplemento 9, setembro 1974, p. 18.

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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