O evangelho lido hoje nas comunidades é Mateus 18, 15- 18. É um texto tirado do quarto discurso de Jesus, dos cinco que fazem parte do evangelho de Mateus.
É bom recordar que o contexto do discurso é a caminhada pascal de Jesus para Jerusalém, o confronto com o Império Romano e o sistema do mundo e nesse contexto, se dá a formação dos discípulos e discípulas.
Essas palavras do capítulo 18 retratam mais a(s) comunidade(s) para a (s) qual (quais) o Evangelho foi escrito do que a própria comunidade de Jesus. Por isso, é bom percebermos: o retrato que Mateus traça de sua própria comunidade não é nada ideal. Pelo que o texto diz, a comunidade enfrentava problemas de pessoas que provocam escândalos. Além disso, o evangelho constata que existe luta pelo poder e divisão entre irmãos, além de casos de discriminação contra pobres e pessoas consideradas pecadoras. Sobre isso, a comunidade lembra palavras de Jesus e compõe o que se chama “o discurso de Jesus sobre a comunidade”. O assunto mais importante desse discurso é a convivência comunitária. O capítulo trata de problemas e dá sugestões concretas para resolvê-los. Numa comunidade de discípulos de Jesus, quem quer ser autoridade deve fazer-se pequeno e servidor (v. 1- 5). A comunidade de Mateus fala de escândalos que existem (6- 9), vacilações na fé (10- 12), propõe o diálogo interpessoal e comunitário como solução para resolver conflitos e reconciliar irmãos em disputa (15 – 18), a oração comunitária (18- 20) e o perdão dado uns aos outros (21- 35).
“A ‘Igreja’ aparece aqui sempre como sendo comunidade local. A ideia de uma Igreja Universal só surgiu já no século II com Inácio de Antioquia. Igreja tem como característica ser uma assembleia local. Nesse discurso, Jesus (e a comunidade de Mateus) deixa claro que a comunidade reunida tem poder para excluir um membro rebelde. Não é um ministro sozinho que pode solucionar isso. Aliás, nesse ministério de julgar e excluir não se menciona a presença de responsáveis pela comunidade. Parece que a comunidade inteira julga. Certamente, o evangelho prefere destacar a solidariedade da comunidade inteira. Diz que todos participam nas decisões que se referem à vida comunitária.
Lendo os versos 15 até 18, ficamos sem saber se, no momento em que foi escrito o evangelho, a comunidade contava com pessoas dotadas de poder de mandar e coordenar os irmãos. Se essas existem, não aparecem. O poder que no capítulo 16, Mateus havia dito que Jesus deu a Pedro (“tudo o que ligares na terra será ligado no céu…”) agora, de repente, Jesus dá a toda comunidade.
Vários exegetas europeus comentam: “A partir de agora, na comunidade cristã, o poder de decidir não fica mais nem com Pedro, nem mesmo com o colégio dos apóstolos, mas com toda a comunidade a qual também os apóstolos pertencem”(A. Schlatter [1]).
“O texto de Mt 18 parece retratar uma experiência mais nova e atualizada na comunidade de Mateus do que a palavra do capítulo 16 que, como vimos, ainda chama Pedro de Simão. Isso significa que a comunidade evoluiu numa direção de organizar o poder de modo mais colegial e igualitário”(W. E. Bundy [2])
Mesmo exegetas de tradição católica mais clássica como W. Trilling e R. Pesh reconhecem: “Mt 18, 18 mostram que o poder disciplinar e de contestar a pertença na comunidade pertence unicamente a toda a comunidade no seu conjunto”[3].
A regra que Jesus propõe sobre o diálogo e a reconciliação vem da lei judaica (Dv 19, 17 e Deut 19, 15). E diz que quem não ouve a comunidade, seja considerado “como um goim (pagão) ou publicano”.
Até hoje, um dos problemas mais comuns nas comunidades é o que as regras antigas chamam de “murmuração” e, comumente, o povo mais simples chama de “fofoca”. Esse tipo de coisas pode destruir uma comunidade. Por isso, é importante criar uma ética comunitária sobre o que se pode e o que não se deve dizer uns dos outros. A tradição judaica antiga, que inspirou as normas de Mateus 18, procurou dar alguns critérios para uma ética da relação fraterna.
O rabi Israel Meir ensinava um modo de filtrar a poluição de rancores e malícias contidos no desejo de criticar alguém. Ele nos deixou a seguinte fórmula:
1) As evidências da desonestidade ou da falta cometidas devem sempre ser obtidas pela própria pessoa e nunca por ouvir dizer de outros. Nunca aceite boatos e rumores como fontes de informação negativa sobre alguém.
2) A pessoa que critica deve ser muito cautelosa e refletir se, de fato, a falta cometida pela outra pessoa foi consciente e com má intenção.
3) Caso isso pareça se confirmar, então, deve censurar a pessoa em questão reservadamente e sem alarde. Não pode ameaçá-la e sim demonstrar a expectativa de que esta corrija sua atitude. Somente ficando claro que isso não ocorre, a pessoa que critica tem o direito de dizer aos responsáveis pela comunidade para que tomem providências.
4) Não deve e não pode tornar o caso mais grave ou maior do que realmente é.
5) Deve acima de tudo garantir que não está censurando o outro por motivos pessoais e por interesses seus ou por inveja ou por espírito de competição e sim por puro desejo de contribuir e ajudar a pessoa e a comunidade.
6) Principalmente antes de criticar outra pessoa, verifique você mesmo/a estar totalmente livre e isenta da atitude que você critica no outro.
7) Antes de denunciar ou falar mal de alguém, verifique se as conseqüências do que você disser da outra pessoa não acarretarão para a pessoa acusada uma punição mais pesada e grave do que aquela que a pessoa merece. Mesmo se ela for culpada de tal coisa, verifique se a acusação não a destruirá moralmente ou socialmente muito além daquilo que ela mereceria[5].
[1] - A.SCHLATTER, Der Evangelist Matthäus, citado por O. SPINETOLI, idem, p. 505.
[2] - citado por SPINETOLI, idem, p. 505.
[3] - citado por SPINETOLI, p. 505.
[4] - J. COMBLIN, idem. P. 15.
[5] - Cf. NILTON BONDER, A Cabala da comida, do dinheiro e da inveja, Rio, Imago, 1999, p. 343.