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Meditação bíblica, domingo, 21 de dezembro 2014

Ontem, fui ao terreiro da Mãe Amara em Dois Unidos, bairro periférico de Recife, para participar de uma festa do Candomblé. Passei toda a tarde lá com a comunidade. Além de me sentir muito acolhido, pude viver com eles e elas as manifestações do Espírito na comunidade e também em cada pessoa.

As Igrejas antigas celebram hoje o 4° Domingo do Advento. Se no primeiro, nossa atenção era a vinda do reino, no segundo e no terceiro, a figura central era João Batista. Agora, no quarto, a figura do Advento é Maria. O evangelho do ano B, (no qual estamos) é o do anúncio do anjo a Maria revelando que ela vai ser mãe de Jesus (Lucas 1, 26 - 38).

Sobre isso, no meu livro "Conversas com Lucas", escrevi o seguinte: 

"O evangelho de Lucas começa no templo com o anjo Gabriel anunciando ao sacerdote Zacarias que, apesar de velho e casado com uma mulher estéril, Isabel, eles terão um filho que será profeta de Deus e deve ser precursor e testemunha da vinda do Messias. 

A partir do versículo 26, o cenário não é mais o santuário e sim uma cidadezinha da Galiléia chamada Nazaré, lugar do qual nunca se fala na Bíblia judaica e em ambiente nada sagrado. Se Zacarias e Isabel representam o judaísmo oficial, Maria representa os pobres de Deus: “a virgem Israel”, ou “virgem, filha de Sião”, como chamavam os antigos profetas.

Lucas e a sua comunidade retomam essa tradição contada por pessoas da segunda geração cristã. E conta a historia do anúncio do anjo a Maria tendo como base e inspirado em um texto da Bíblia judaica repetido quase com as mesmas palavras. No século VII antes de Cristo, o profeta Sofonias tinha escrito: “Alegra-te, filha de Sião, exulta! Deus está no meio de ti e já não verás mal nenhum...” (Sf 3, 14 ss). É com essas mesmas palavras que, segundo vocês contam, o anjo teria saudado Maria. Como para dizer que Maria é o resumo dessa virgem filha de Sião, agora fiel à palavra divina. Maria representa Israel e o novo povo de Deus em sua vocação de engravidar a Palavra e fecundar o mundo com a presença divina.

Quando o texto diz que o anjo promete a Maria que “a sombra do Espírito Santo descerá sobre ti”, os termos são os mesmos com os quais a Bíblia fala da nuvem espessa ou da sombra através da qual,  antigamente, Deus acompanhou o seu povo no deserto (Ex 14, 35). Essa imagem da “sombra divina descerá sobre ti” retoma as histórias do Êxodo que diziam que, quando Moisés entrava na tenda da reunião (Shekinah) para consultar a Deus, uma sombra espessa descia sobre a tenda. Essa tenda divina era, provavelmente, a designação de uma divindade feminina muito antiga e que, na tradição bíblica, se torna imagem da presença materna de Deus caminhando com o seu povo. A Shekiná era uma espécie de útero materno divino, que, como uma tenda era para o povo no deserto o sinal vivo da presença contínua e da proteção divina. Sobre essa tenda vazia, na qual se guardava a arca da aliança, dizem os textos que descia uma nuvem que a cobria com a sua sombra. Quando isso ocorria, o povo acampava, quando a nuvem se levantava, o povo marchava (Cf. Nm 9, 18- 25). Então, essa sombra do Espírito significa essa mesma presença libertadora e íntima de Deus em Maria. Para falar da ação de Deus sobre Maria “cobrir com sua sombra”, Lucas e sua comunidade usam a mesma expressão com a qual mais adiante descrevem a manifestação divina na montanha quando Jesus foi orar com três de seus discípulos e, na presença deles, mostrou em seu rosto um brilho especial do esplendor divino (Lc 9,328- 36).

 No século IV, os antigos monges, os pais do Deserto interpretavam a virgindade da Maria como a conquista de um espaço de silêncio, de inocência e de pureza no interior de nós mesmos, onde uma concepção imaculada possa transcorrer. Para os antigos que liam a Bíblia, o aspecto simbólico tinha primazia com relação ao puramente material. Nessa interpretação, a sombra do Altíssimo, para a mulher, é o homem; para o homem, é a mulher. Maria é um arquétipo do Sim original que habita no coração de nosso potencial de amar”. 

Para o mundo dos Evangelhos, acentuar a virgindade de Maria era simplesmente o modo de dizer que ela era pobre. Ela mesma comentou o que aconteceu consigo dizendo: “O Senhor olhou para a humildade (a pobreza) de sua serva” (Lc 1, 48). Conforme o Evangelho, ela é chamada virgem porque era pobre, sem marido, sem esperança de descendência. E, nesse sentido, representa ou sintetiza o povo pobre que esperava o Messias, mas não tinha como se expressar. A palavra do anjo a surpreende.

- A aparição ao sacerdote Zacarias no templo lembra que a instituição religiosa mantém sempre uma função importante. Antigamente, como hoje, a religião pode apontar e testemunhar a atuação de Deus no mundo. Mas, como no caso de Zacarias, Deus é particularmente severo diante da surdez espiritual ou da dureza de coração que, às vezes, como Zacarias, a instituição religiosa, ou simplesmente a comunidade, demonstra. E a pune lhe retirando o dom da palavra. Ao contrário, o “sim” de Maria parece devolver à possibilidade de Deus atuar no mundo, respeitando a liberdade da gente (como no caso de Maria). O texto mantém essas duas possibilidades: dois modos de manifestação de Deus:

1º) a partir da tradição religiosa (qualquer que ela seja)

2º) um outro modo, novo e inesperado, com Maria, fora da tradição propriamente religiosa. O texto não diz que a religião está superada, embora o sacerdote se diga ancião demais e casado com uma mulher estéril, mas insiste: Deus é sempre livre e, como, depois, o quarto Evangelho dirá: “O Espírito sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai” (Jo 3, 8).

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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