- O rico e o pobre Lázaro (Lc 16, 19 – 31).
É uma parábola própria do evangelho de Lucas e, sob certo ponto de vista, muito problemática. É preciso compreendê-la como um conto da religião popular da época. Só assim podemos aceitar essas imagens de um quase fatalismo que condena uns ao inferno eterno e sem remissão.
Essa mesma história foi encontrada na antiga literatura egípcia[1]. E também contos semelhantes estão em livros judaicos da época do final do primeiro testamento. Na tradição judaica, não havia essa imagem de duas moradas opostas e nem se pensava que o Sheol fosse lugar de tormentos. Era um estado de sombra, mas não tinha essa imagem de fogo. Isso vem dos apocalipses judaicos da época do final do primeiro testamento. O próprio fato de chamar Deus de pai Abraão parece vir de fontes muito antigas e da religião cananéia, mais do que da tradição bíblica. Para a religião judaica popular da época, Abraão (em hebraico Grande Pai) seria uma espécie de Orixá, uma representação de Deus.
“Etimologicamente, o nome Abraão representava o próprio Deus: Abiran. É a esse deus ao qual os reis cananeus e também o patriarca Abraão adoravam” (Cf. Gn 14, 18)[2].
Como é freqüente nos contos de religião popular, seja qual for, (existem contos assim no Judaísmo, no Cristianismo e no Islamismo), a perspectiva é de retribuição com prêmio ou castigo depois da morte ou aqui mesmo na terra.
Graças a Deus, a fé na graça de Deus e da salvação universal que o evangelho de Lucas anuncia faz a gente superar essas parábolas de retribuição para uma compreensão da fé mais gratuita e de salvação. Como dizia o irmão Roger Schutz, prior de Taizé: “Deus só pode amar!”.
O contexto da parábola nesse capítulo do evangelho de Lucas adverte sobre os riscos da riqueza e propõe um apelo à conversão. É somente isso que se deve colher dessa história e não uma doutrina sobre Deus ou sobre o além-morte ou sobre o inferno. Mas, esse contexto indica algo que no mundo atual se tornou ainda pior do que no mundo antigo: No Capitalismo, nesse sistema em que a vida humana é degradada ao nível do consumo (banquetes e roupas maravilhosas com as quais o rico se veste) não há salvação possível e a morte do pobre (morte provocada pelo sistema e na parábola o pobre morre antes do rico) é para o rico a morte de qualquer possibilidade de salvação. O evangelho conta isso com essas imagens de um abismo do qual ninguém pode passar de lá para cá.... De fato, esse inferno é o próprio mundo e a única diferença da parábola é que enquanto o pobre - a humanidade - migrantes e a massa de gente condenada à morte, enquanto ainda vive podemos sim transformar esse mundo...
[1] - Cf. Un viaggio nell´aldilà, in Testi religiosi egiziani, Torino, UTET, 1970,pp. 542- 544.
[2] - Cf. MARCELO BARROS, A Revelação do Mistério Uno e Múltiplo, (Releitura macro-ecumênica do Nome divino em Ex 3), in Estudos Bíblicos 100, (2008), p. 38.