"Cristo ressuscitou, o mundo está salvo!", canta um refrão da Igreja oriental. "Cristo ressuscitou, agora eu sei porque estou vendo você, meu irmão", dizia Serafim de Sarov quando, na floresta da Rússia no século XIX, encontrava alguém que podia ser um fugitivo da polícia ou um bandido. Ele via no rosto de cada pessoa humana o sinal de que Jesus ressuscitou mesmo.
Para mim, celebrar a Páscoa tem essa função terapêutica e renovadora. Ontem, cheguei na Igreja das Fronteiras pelas seis da tarde e saí quando já eram mais de dez da noite. Acolher as pessoas, meditar, ensaiar cânticos e finalmente celebrar a festa. Não havia muita gente. Penso que umas 20 ou 25 pessoas. Mas, foi uma celebração carinhosa e renovadora. Agora acordo, escrevo essas linhas e vou me preparar para celebrar com eles a missa da ressurreição às 11 horas.
Deixo com vocês uma meditação do bispo anglicano Dom Sebastião Soares, meu amigo:
“Verdadeiramente o Senhor ressuscitou. Aleluia”
Mensagem de Páscoa
Certamente, Você já deve ter notado que os textos dos evangelhos, que narram a ressurreição de Jesus, são poesia em forma de conto. Vã tentativa de dizer com palavras o que palavras não podem conter. O mistério é inefável. Decerto, é o aparentemente absurdo, salvo, transfigurado, pela potência da fé. Aí se respira o mesmo clima fantástico dos sonhos de toda a Bíblia. É o que se vê nos salmos, nos poemas contidos em livros históricos, em textos do Êxodo, nos textos proféticos, no Cântico dos Cânticos, no exaltado capítulo oitavo da Carta aos Romanos, na primeira Carta de Pedro, nas visões de Apocalipse... Fala-se de anjos celestiais, de jovem vestido de branco, a cor luminosa do mundo divino, de pessoas mortas que voltam a passear pela cidade santa, de tremor de terra, relâmpagos e luz ofuscante, de conversas estranhas a este mundo, como se já não houvesse fronteiras entre terra e céu e o mundo tivesse voltado a ser o jardim do paraíso. No evangelho segundo Marcos, por exemplo, é o primeiro dia da semana que, ao raiar do sol, dissipa as trevas da madrugada. É o novo tempo do mundo, banhado em luz. Ao mesmo tempo, porém, respira-se no ar o tenso clima de ambiente de conspiração. Mulheres que saem na escuridão da noite, corajosamente solidárias, interessadas num condenado à morte pelos poderes do Estado. Soldados montam guarda junto ao túmulo lacrado. Pavor e medo... enquanto os discípulos do Nazareno se escondem “de portas trancadas”.
Tudo isso é intensamente simbólico e expressivo. Como diria o grande teólogo Carlos Barth, participar da corrente da fé é como entrar na companhia de gente que conspira contra o perverso sistema deste mundo, “conspiração de testemunhas”, com coragem de atestar que a vida, sim, é que tem a última palavra, vitoriosa sobre a morte, raio brilhante que projeta luz nas densas trevas da condição humana (cf. 1Cor 15, 20-29. 54-58). Testemunhas feito loucas, visionárias, que vêem com nitidez o que muita gente nem de longe é capaz de enxergar. Com tanta certeza, que já não temem força alguma neste mundo, nem mesmo a própria morte, pois já não há mais barreira intransponível, “caminham como se vissem o invisível” (Hb 11, 27).
Ilusão? quem sabe, como de todas as pessoas que amam. Tantas fracassam e saem com o sentimento de que o amor, e até a vida, não valem a pena, e desistem e tornam-se “ateias” quanto ao amor e à luz. Este, sim, o verdadeiro ateísmo. Ao mesmo tempo, porém, quantas não chegam a experimentar, como verdade da vida, que o amor é possível, capaz de mostrar-se real e de transfigurar o quotidiano e, mais ainda, pede ser eterno, mostrando-se vitória sobre a morte já em vida? Dá vontade de corrigir Vinícius de Moraes, poeta do amor, pois a intuição é “que seja eterno, eterna chama, e seja infinito e sempre dure”. É o que faz que inumeráveis pessoas, ao longo da história, tenham tido e continuem a ter coragem de sair em plena noite, como aquelas mulheres, amigas do condenado, pequenino grupo e ignorado, aparentemente à margem do “realismo” da história. Enquanto caminham por estradas sombrias, seus passos atraem a luz que dissipa as trevas e recriam “o primeiro dia da semana”, qual esplendorosa flor a brotar por entre as pedras do jardim.
Como não correr sem medo dos guardas – mercenários a vigiar túmulos dos sistemas de morte – para anunciar tal inédita novidade? É assim que, incrivelmente, continua a haver gente que não se convence das trevas e prossegue na loucura de manter viva a ironia antiga, proclamada pelo Apóstolo São Paulo: “Onde está, ó morte, a tua vitória, onde o teu aguilhão?” (1Cor 15, 55). A morte já foi afogada na vitória. Experiência tão irrecusável, como se o brilho do amor já tivesse invadido o mundo todo, é que já inundou, qual onda irrefreável, todo o coração. Como se deu com Jesus. Doutro modo, como compreender tantos e tantas mártires e confessores e confessoras da fé e da justiça de Deus? Inácio de Antioquia, feliz pela certeza de ser triturado qual trigo de Cristo na boca dos leões; Policarpo, Cipriano, Perpétua e Felicidade, senhora e escrava irmanadas na mesma certeza; Luzia, Inês, Ágata... Francisco de Assis, o monge Savanarola queimado vivo em praça de Roma; Joana D’Arc, comandando exército e acusada de feiticeira; Dietrich Bonhoeffer, mártir do Nazismo, engajado na oposição a Hitler; Edith Stein, judia cristã, freira, vítima do antijudaísmo; Martin Luther King Jr., herói dos direitos civis do povo negro dos Estados Unidos da América; Oscar Romero, o surpreendente arcebispo de El Salvador, que entregou sua vida pelos pobres de seu povo; Helder Camara, o profeta da Justiça; Irmã Dulce, da Bahia, mãe da pobreza; Tereza de Calcutá, irmã dos pobres da Índia; Dorothy Stang, defensora dos sem-terra e da terra sem cuidado; Pedro Casaldáliga, corajoso bispo de São Félix e os mártires do Araguaia... como entender, em plena civilização egoísta e hedonista de hoje que o século XX tenha sido o tempo que mais produziu mártires?
O passo decisivo, que mais poderia interessar, não é buscar argumentos para “demonstrar” que Jesus realmente está vivo. A ressurreição, com efeito, não é acontecimento “dentro” da história deste mundo, antes, estabelece novo fundamento para viver a história neste mundo, pois o transcende definitivamente. Trata-se, na verdade, de experimentar em nós mesmos(as) “ter passado da morte para a vida porque passamos a amar-nos como irmãos” (1Jo 3, 14). Jesus mesmo indicou: “Vocês vão saber que Eu vivo porque vocês vivem” (Jo 14, 19). Da mesma forma falam os Atos dos Apóstolos: “A multidão dos que criam era um só coração e uma só alma. Ninguém dizia que eram seus os bens que possuía, mas tudo entre eles era posto em comum. Com grande poder os Apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e todos eles eram muito estimados. De fato, entre eles não havia nenhum necessitado (...)” (At 4, 32-37). Como escreveu, há anos atrás, o biblista português Fernando Belo, só é capaz de crer na ressurreição, quem experimenta viver em insurreição contra este sistema de aparência e sombras.
“Verdadeiramente o Senhor ressuscitou e se fez perceber” no partir do pão (Lc 24, 35; cf. 30-31). Invisível em sua figura humana terrena, Ele se torna o divino traço de união, o vínculo inquebrantável entre nós que nos esforçamos por segui-Lo, na certeza de que, porque vivemos uma vida nova, Cristo foi ressuscitado dos mortos para a glória do Pai (cf. Rm 6, 4). É a vida que nos revela a Vida. “Vai chegar a hora, e é agora, em que “os mortos” ouvirão a voz do Filho de Deus, e aqueles que a ouvirem terão a vida”. Para o evangelista, passamos da “morte” à vida quando já agora “ouvimos a voz do Filho de Deus”, isto é, seguimos Seu chamado. É assim que saímos dos “sepulcros” por nós mesmos construídos (cf. Jo 5, 25 e seguintes)... Não é verdade que “de amor para entender é preciso amar”? Como perceber a nova vida de Jesus se já não a experimentamos ao viver nova vida em nós?
É este meu voto de Páscoa para todos e todas nós.
Alto do Moura, Caruaru, 26 de Março de 2015
Dom Sebastião Armando