Neste 4o domingo do Advento, as comunidades católicas e anglicanas leem o evangelho de Mateus cap. 1, 18- 24:
Enquanto Lucas conta que o anjo anunciou a Maria, a comunidade de Mateus conta que o anjo apareceu em sonhos a José. O fato de ser “em sonhos” se liga à tradição dos patriarcas: o próprio José, filho de Jacó. Quem aparece não é um anjo como em Lucas. É o próprio “Anjo do Senhor”, expressão para dizer “a Palavra do Senhor”, “a Glória do Senhor”, uma visibilidade do próprio Deus. Hoje, nós somos chamados a ser esse anjo do Senhor, isso é, sinais concretos e visíveis da presença e do amor divinos. No evangelho, José é apresentado como um justo que percebe na mulher a obra de Deus e quer se retirar para não atrapalhar uma obra de Deus que ele não pode compreender.
O sonho não é apenas o momento no qual as frustrações do inconsciente se soltam. Através do sono, a pessoa convive com uma dimensão interior mais profunda de si mesma e pode ouvir de modo mais puro a sua vocação.
Na sociedade do tempo de Jesus, havia uma prática cultural chamada do desposório. Através dela, se dava inicio ao contrato de casamento no qual as famílias ingressavam. O casal era considerado marido e mulher. Mas, durante um tempo, ela permanecia na casa de sua família e eles não tinham ainda relações sexuais. Quando o texto diz: “antes de coabitarem, ela engravidou”, está dizendo que eles ainda não moravam juntos e nem tinham tido relações sexuais. Seria, então, compreensível que José concluísse que ela teve relações com outro homem. Na época, isso seria um adultério, porque eles dois (Maria e José) já estavam comprometido em casamento. Assim, segundo padrões culturais convencionais, Maria está exposta à marginalização social, econômica e religiosa. (Existe na Bíblia maldições para mulheres em situações como esta e para seus filhos. Ver Eclo 23, 22- 26 e Sb 3, 16- 19 e 4, 3- 6)
“Ao dizer que ela concebeu “através do Espírito Santo” (ou "através do sopro divino”, o evangelho fala de uma forma estranha para a sua geração e para todos os tempos. Seja qual for a interpretação que se dê a esta tradição, o fato é que, ao falar assim, o evangelho mostra uma coisa importante: Deus rompe com a genealogia patriarcal. (A geração se dá sem ser por um homem macho. Isso naquela cultura era considerado ainda pior do que seria hoje em dia. Jesus e a comunidade dele começam rompendo com o patriarcalismo”.
José ouve do anjo em seu sonho que tem um papel próprio na ação libertadora de Deus. O Senhor lhe pede que assuma essa função. A função de José é que ele deve dar a Jesus o seu nome para que Jesus possa ser reconhecido como “Filho de Davi”. É José que ligará Jesus à tradição messiânica davídica.
O filho que nascerá de Maria será a realização das mais profundas promessas de Deus ao seu povo. Será a visibilidade da presença do Senhor que virá morar com o seu povo (Emanuel). Que forma bonita de falar da ressurreição de Jesus, o que já lemos no capítulo final do Evangelho.
Seria bom nós cristãos ouvirmos a interpretação que as comunidades judaicas fazem dessa promessa de Deus em Isaías 7. Historicamente, referia-se a que o rei Acaz, sem descendente e ameaçado pela Síria e pela Samaria teria como sinal de Deus o fato de que uma moça engravidou e lhe daria um filho. Esse filho, historicamente, teria sido Ezequias: um rei justo e bom, sinal da presença de Deus junto ao seu povo. É claro que, mais tarde, as comunidades judaicas releram esse texto, dando-lhe sentido messiânico. Aí disseram:: esse filho que nascerá será o Messias, o Cristo. Mas, o fato de interpretar que essa palavra se referia ao Messias que virá não nega que ela tenha tido um primeiro cumprimento no nascimento de Ezequias. Ele não foi o Messias, mas foi uma figura do Cristo.
Nós, cristãos, cremos que Jesus é o Messias que devia vir. Mas, como ele mesmo deixou claro: aquela não era ainda a sua vinda na glória. Nesse sentido, os cristãos também esperam com Israel a vinda do Messias. E cada Natal é sinal dessa espera.
Fico triste que os católicos e a própria Igreja transformou o Natal em um mero aniversário do nascimento de Jesus. Não devia ser. Deveria ser uma celebração dessa esperança da libertação que Jesus trará.
No tempo de Jesus, havia muitas correntes messiânicas em Israel. Jesus sempre se ligou à tradição profética. Ele se revelou como “Servo do Senhor”. Ao menos, é assim que vocês, comunidade de Mateus, o mostram no batismo, como no capítulo 12 e no relato da Paixão. Por que, então, nesse primeiro capítulo, frisar esse título de “Filho de Davi”?
De qualquer maneira, o evangelho deixa uma luz sobre isso quando encerra o capítulo dizendo: “José, despertando do sono, fez como o anjo lhe ordenara e recebeu a sua mulher. E salienta que José não a conheceu até que deu à luz a seu filho, o primogênito, ao qual lhe deu o nome de Jesus” (1, 25).
Uma leitura deste texto a partir da tradição simbólica da Cabala veria José como aquele que trabalha a madeira ou a obra de suas mãos. Isto significa: trabalha para desenvolver o mais profundo do seu ser. E essa dimensão mais profunda de si é fazer aparecer ao Senhor como único esposo. Ele é o único verdadeiro esposo de Maria, símbolo da comunidade nova. É pela força do Espírito que ela concebe e dá a luz ao seu filho Jesus.
Como nos livros antigos, o prólogo resume todo o livro. Aqui, a proposta de Mateus fica clara: Jesus é o herdeiro verdadeiro das promessas de Deus a Davi, mas veio ao mundo por obra direta de Deus. Assim ele recebeu o nome que resume sua missão. É o mesmo nome de Josué, o patriarca que introduz o povo hebreu na terra prometida. Jesus (ou Ioshuá) é a expressão humana de que Deus é Salvador. O menino que nasce assim é o verdadeiro Messias de Israel. Vocês não sublinham o que outros textos cristãos dizem: Que Ele ainda virá como Messias. De fato, cremos que desde que ressuscitou, Ele está conosco todos os dias até a consumação dos séculos. Mas, tanto nós, cristãos, como também, de outra forma, nossos irmãos judeus, esperamos unidos essa “plenitude dos tempos prometida por Deus”.