Hoje é o último domingo desse ano litúrgico. (No próximo domingo, já começaremos o 1° domingo do Advento do ano litúrgico de 2015). E desde a reforma litúrgica feita depois do Concílio, a Igreja Católica dedica esse último domingo do ano à festa de Cristo Rei. Essa festa foi criada pelo papa Pio XI em 1925, portanto é recente. Nem tem cem anos. E foi criada em um contexto no qual depois de ter perdido os territórios do reino pontifício (na época de Pio IX e da unificação da Itália), o papa Pio XI fazia com o Estado italiano o acordo que lhe deu direito de ter o Vaticano como estado soberano. (reino simbólico). E como sempre, o jeito de reafirmar o poder da Igreja e o seu direito a dominar o mundo é falar do reino de Cristo.
Eu esperava que a reforma litúrgica do Concílio abolisse essa festa ou mudasse totalmente essa linguagem. Isso não aconteceu. De todo modo, os textos bíblicos da liturgia falam de Deus como pastor - isso é aquele que toma conta das ovelhas e conduz o rebanho para onde tem pasto (comida abundante) e vida. Ter Deus como alguém que nos conduz - eu estou mantendo aqui a linguagem tradicional de Deus como pessoa, mas podemos pensar concretamente que ele se manifesta como energia amorosa dentro de nós. E aí sim, tem sentido dar graças a Deus pelo fato de que podemos ser movidos por essa energia e por crer (ter confiança) de que ela toma conta de nossas vidas. O evangelho lido nas celebrações desse domingo é Mateus 25, 31 a 46 que comumente é conhecido como parábola do juízo final. Transcrevo aqui o que sobre ela escrevi no livro "Conversa com Mateus":
– A perspectiva do encontro é para hoje (Mt 25, 31- 46).
Parece que a comunidade de Mateus é teimosa. Muitos continuavam perguntando: “Quando acontecerá a vinda do Senhor?”. Mateus conta uma parábola diferente de todas as outras. Uma parábola que é uma espécie de visão futura da vinda do Filho do Homem. É futura e até a tradição cristã a chama de “juízo final”. Mas, de fato, o que, nessa história, o Filho do Homem vai dizer aos eleitos é que não adianta a pessoa esperar aquele dia final para encontrá-lo. Ou reconhecemos que ele estava do nosso lado, cada vez que encontramos uma pessoa necessitada, ou não seremos no último dia reconhecidos por ele. Portanto: a data do julgamento e da vinda do Filho do Homem é hoje. Temos um encontro com o Filho do Homem cada vez que passarmos por perto de uma pessoa que precise de nós. O decisivo vai ser o encontro banal de cada momento.
“O texto de Mateus 25 que descreve o juízo final é desconcertante e questionador, pois identifica Jesus com os pobres e convoca a reconhecer o rosto de Jesus no rosto dos pobres. (...) Essa passagem do evangelho é fundamental para compreendermos a relação de Jesus com os pobres e, consequentemente, a relação dos seguidores de Jesus, com os pobres. (...) Todo gesto em direção ao outro, de aproximação aos mais pobres, decide a proximidade ou a distância que a pessoa em questão tem de Deus”[1].
O quinto discurso de Jesus em Mateus se conclui com uma parábola sobre o julgamento de Deus. Este julgamento divino atinge a todas as nações (ethné). “Todas as nações serão reunidas diante dele”. É um julgamento universal. Abrange a todos os seres humanos, independente de religião e de cultura. “Ele separará as pessoas umas das outras, como o pastor separa as ovelhas das cabras”.
É uma imagem comum no estilo de vida da época palestina, portanto da época de Jesus e talvez ainda na região da Síria da comunidade de Mateus: o rebanho era misturado de ovelhas e cabras. Para nós, hoje, é uma linguagem estranha e inadequada porque compara as pessoas com ovelhas ou cabritos, mas é um jeito de falar comum nos apocalipses judaicos daquela época.
O julgamento é um discernimento e separa as ovelhas das cabras. Conforme o mesmo evangelho, João Batista tinha dito que ele separará o trigo e a palha (Mt 3, 12). Jesus tinha dito que, no final dos tempos, Deus separará o trigo do joio (13, 24- 30) e ainda os tipos de peixes diferentes que vêm na rede (13, 47- 50). Este discernimento ou separação vai determinar a sorte de uns e de outros.
A primeira instrução de Jesus chama os pobres e sofredores de “bem-aventurados, ou felizes” (ou “prá frente”). Agora os chama de benditos. Na primeira palavra do discurso da montanha, eram proclamados “felizes” os pobres e pequeninos. Agora, são proclamados “benditos” os que socorreram os pequeninos em nome do Senhor. Há uma profunda ligação entre os dois discursos: o primeiro das bem-aventuranças e esse da bênção da vida eterna. É importante perceber que, por duas vezes, o texto se referirá aos bem-aventurados ou benditos como justos (Cf. os versos 37 e 46). Então, o fundamental não é se as pessoas são religiosas ou não e sim se são justas e fazedoras da justiça. Trata-se da justiça do reino (Mt 6, 33), justiça que o primeiro testamento ligava ao amor solidário e uterino de Deus.
Seremos julgados pelo amor que, cada dia, dedicamos aos irmãos e irmãs. Kabir, místico muçulmano da Idade Média, afirmava: “Quem é a pessoa santa? Toda pessoa que tem consciência do sofrimento dos outros seres humanos e com eles se solidariza”. No século XX, o rabino Abraam Heschell escreveu: "Cada judeu ou judia que vive a sua fé é arquiteto de mundos ocultos. Cada pessoa piedosa é, em parte, o Messias”.
O evangelho de Mateus herda a linguagem dos apocalipses judaicos quando fala em castigo eterno e vida eterna. Se os dois termos se opõem, o castigo é simplesmente o não viver plenamente. No 2o livro de Macabeus, se diz: “Para ti não haverá ressurreição para a vida” (2 Mc 7, 14)[2].
A comunidade dos discípulos que no discurso sobre a Igreja (cap. 18) foi chamada a acolher em seu meio os pequeninos, agora é julgada pela solidariedade concreta para com este pequenino. A Igreja é chamada a ser uma comunidade unida, mas deve viver para fora de si mesma. Suas preocupações não podem ser apenas internas, com sua própria estrutura. Sua missão é testemunhar a vinda do reino e organizar a caridade solidária para com todos.
Dom Oscar Romero, bispo salvadorenho assassinado em 1980, afirmava: “Existe um critério para saber se Deus está próximo ou distante de nós. Toda pessoa que se preocupa com a fome, a nudez do pobre, do desaparecido, do torturado, do prisioneiro, de todos os que sofrem, está próximo de Deus”[3].
Um místico norte-americano de uma Igreja evangélica escreveu: “Por que deveria eu desejar a visão de Deus mais do que tenho no dia de hoje? Vejo algo de Deus a cada hora das vinte e quatro e a cada momento. Vejo Deus no rosto dos homens e mulheres que encontro, e em meu próprio rosto no espelho. Encontro cartas de Deus caídas nas ruas e cada uma delas tem a assinatura do nome de Deus” (Walt Whitman- quacker - século XIX)
[1] - VERA IVANISE BOMBONATO, Jesus e a opção pelos pobres, in PEDRO RIBEIRO DE OLIVEIRA, organizador, Opção pelos pobres no século XXI, São Paulo, Paulinas, 2011, p. 141.
[2] - Esse parágrafo foi praticamente transcrito do comentário de SANDRO GALAZZI, Mateus, (uma leitura a partir dos pequenos), Comentário Bíblico Latino-americano, Novo Testamento, São Paulo, Fonte Editora, 2012, no comentário ao cap. 25 do evangelho (no texto impresso e colhido na internet p. 289).
[3] - DOM OSCAR ROMERO, Discurso de 5 de fevereiro de 1978, citado por VERA IVANISE BOMBONATO, idem, p. 142.