Camaragibe, quarta-feira de cinzas, 2015
“Ao ver que chegou sua hora de passar deste mundo ao Pai, Jesus, tendo amado os seus que estavam no mundo, foi até o extremo do amor (até onde o amor pode ir)” (Jo 13, 1ss).
Queridos irmãos e irmãs,
Se somos discípulos e discípulas de Jesus é para segui-lo nesse caminho de amor até onde o amor pode ir. Para isso, cada ano, os cristãos de Igrejas mais antigas celebram Quaresma e Páscoa. É um tempo oportuno para que, ao lembrar a morte e ressurreição de Jesus, cada um possa se renovar interiormente e colabore para transformar o mundo e tornar a Igreja mais pascal.
Ainda hoje, a Quaresma é associada a práticas de jejum e penitência. Quem vê de fora pode pensar na Quaresma como mera repetição anual dos mesmos textos e ritos. Entretanto, ao contrário, Paulo escreve à comunidade cristã de Roma: “Já que vos dais conta do tempo em que estamos vivendo, é hora de despertardes do sono, porque a nossa salvação está agora mais perto de nós do que quando abraçamos a fé” (Rm 13, 11).
Quando Paulo diz que a salvação está mais perto de nós, não devemos interpretar como se se tratasse apenas da santificação pessoal. A atenção maior de Paulo é o que, no evangelho, Jesus chama de “reinado divino” ou reino de Deus, a realização do projeto divino no mundo. Não somos nós que construímos o Reino e nenhum sistema social o realiza totalmente. É graça e dom. Mas, somos testemunhas do reinado divino que começa a ocorrer no mundo e podemos colaborar com sua realização quando trabalhamos pela justiça, paz e defesa da criação, inclusive nas organizações que, mesmo defeituosamente, se aproximam ou caminham no sentido da realização do projeto divino no país ou no mundo.
No Novo Testamento, a virtude que Paulo e os apóstolos pedem aos cristãos/ãs é muitas vezes traduzida como paciência e perseverança[1]. De fato, o termo grego expressa a atitude de quem aceita ficar por baixo, humilhar-se mesmo para servir, para apoiar, para sustentar os outros. Paulo pede essa postura de todos nós, cristãos e ele justifica isso dizendo que essa é a postura de Deus. Deus se abaixa e se torna pequeno e humilde para nos servir e para no mundo realizar o diálogo da salvação. Então, o tema da Campanha da Fraternidade 2015 ( o diálogo da Igreja com a sociedade) não é apenas uma tarefa pastoral. É a própria missão da Igreja e sua forma de viver a fé. E o que nós celebramos na Quaresma- Páscoa é esse movimento de Deus humilhar-se e vir ao nosso encontro e ao encontro do mundo em um diálogo libertador. De fato, nesse sentido, a paixão de Jesus, sua cruz, não foi apenas o momento da morte. Foi uma direção que ele deu a toda a sua vida e que corresponde a uma revelação de como Deus é e como Deus se comporta. Orígenes, pai da Igreja de Alexandria, no século III, fala na “humilhação” de Deus na história dos homens. Normalmente, não estamos habituados a falar de Deus assim como esses termos. Na Igreja de hoje, Deus aparece sempre como todo-poderoso e Senhor. Autores atuais traduzem esse movimento martirial e pascal de Jesus (que a carta aos filipenses chama de Kenosis (esvaziamento), ela é de Jesus, mas também do próprio Deus, como o esforço de inserção amorosa de Deus na história e em interessar-se e comprometer-se com os problemas humanos[2]. Sempre gostei do início do salmo 41 que diz “Com intensa expectativa, esperei em Deus que é amor. Ele (ela) se inclinou, para mim, se abaixou até a fossa em que eu jazia e dali me levantou”.
Nesse mesmo sentido, o autor da 2ª carta de Pedro chega a dizer que “essa atitude de Deus é duradoura. É como uma espécie de paciência” e a nossa salvação” (2 Pd 3, 15). Por sua vez, Paulo ensina que a tribulação, (os sofrimentos) produz a hypomonè, isso é, a perseverança (o manter-se nessa missão de inserção amorosa e como postura de abaixamento e pequenez) e essa é a esperança que nos salva” (Rm 5, 3).
Nossa celebração da Quaresma e da Páscoa deve expressar a pastoral de uma Igreja discípula de Jesus no seu serviço à humanidade, especialmente, aos mais necessitados. Isso pede de nós atenção e maior apoio às pastorais sociais e diálogo com os movimentos populares nesse espírito de hypomonè, ou seja, serviço humilde, despreendido e amoroso[3].
Para quem é cristão, nessa Quaresma, o mais importante não é a prática de devoções penitenciais que não mudam nada na vida e sim renunciar a tudo o que for necessário e se dispor a uma maior solidariedade com os projetos que restituam à juventude do campo e da cidade uma possibilidade de vida nova e pascal. Isso também para nós será fonte de profunda alegria. No século IV, o bispo João Crisóstomo ensinava: “A Páscoa de Jesus vem fazer da vida da gente, mesmo no meio das lutas e das dores, uma festa permanente de esperança e comunhão”.
A cada um/a de vocês, desejo uma celebração fecunda e renovadora desse tempo Quaresma e Páscoa.
Um abraço do irmão Marcelo Barros
[1] - O termo grego hypomonè é uma combinação do verbo grego permanecer (menein) com o advérbio de lugar sob, ou embaixo (hypo).
[2] - Cf. GIUSEPPE RUGGIERI, La Verità Crocifissa, Roma, Ed. Carocci, 2007, pp.15.
[3] - Quem quiser aprofundar mais a exegese desses textos do Novo Testamento e o sentido etimológico e histórico do termo hypomonè, veja: G. KITTEL e G. FRIEDRICH, Grande lessico del Nuovo Testamento, VII, Brescia, Queriniana, 1971, pp. 56- 66 e também GIUSEPPE RUGGIERI, La Verità Crocifissa, Roma, Ed. Carocci, 2007, pp.12- 13.