Desde ontem, 6a feira, estou em Campina Grande, para o 23o encontro da nova consciência. Um encontro sobre espiritualidade holística que, nesse ano, toma como tema a relação entre espiritualidade, ética, direitos humanos e liberdade de expressão.
Acho ótimo que, pela primeira vez, o encontro tenha assumido esse tema, embora seja amplo demais e penso que está muito distante da maioria das pessoas espirituais ou religiosas aqui presentes (a maioria de classe média e formada em tipos de espiritualismos muito mais voltados para a autoajuda, o próprio eu e assim por diante). Ontem, na abertura, fiz uma breve provocação - citei Santo Irineu de Lyon que, no século II, afirmava: "Como você imagina tornar-se divino (divinizar-se) se nem trabalha a sua dimensão humana? Torne-se primeiramente uma verdadeira pessoa humana e então será capaz de acolher em você a condição divina".
E claro que para quem quer viver uma espiritualidade profunda, não basta respeitar os direitos humanos (às vezes, não se consegue nem isso). Disse Jesus: a vossa justiça deve ir além da justiça dos religiosos da lei (escribas e fariseus), É preciso mais do que respeitar os direitos humanos, assumir a causa dos oprimidos como sendo a minha, a nossa causa. E viver em função disso. Ser testemunha divina para a libertação de toda pessoa oprimida.
Sem isso, as religiões são não apenas vazias, mas prejudiciais, porque enganam a humanidade.
Deixo vocês agora com o comentário que, no meu livro "Conversas com Mateus", faço ao texto do evangelho que as comunidades católicas e anglicanas leem nesse domingo (Mateus 6, 19- 34):
Eis uma das mais belas páginas sapienciais da Bíblia. A idéia do tesouro que temos no céu aparece em Tb 4, 8- 9 e em vários textos judaicos mais tardios. Em uma época como a nossa, dominada por um sistema social que tenta privar as pessoas das suas mais profundas convicções e lançar a todos num descrédito sobre tudo e sobre todos, é bom escutar novamente Jesus nos dizer que o tesouro de cada um está onde está o seu coração e que a pessoa se desenvolve ou não, de acordo com o objeto do seu desejo mais profundo. Por isso, o ser humano não pode se dividir em diversos “tesouros”. A gente tem de ter um tesouro único e é bom que seja o melhor, ou o mais profundo tesouro da vida: a capacidade de amar, de doar-se e de ser plenamente humanos.
Ao pedir “Não acumulem”, o evangelho parece lidar com uma comunidade que vive em uma sociedade na qual a acumulação e o consumo são práticas comuns. Se naquela época, já era assim, sobre este assunto, o que Jesus não diria à nossa sociedade de hoje? Na sociedade antiga, como na atual, o status da pessoa é muito definido pela sua capacidade de acumular riquezas.
Em revistas importantes, a cada ano, a sociedade atual faz questão de elencar quem são os maiores milionários do mundo ou do país. Mas, o sermão da montanha diz: este tipo de riqueza é vulnerável. Na época, o perigo eram as traças e a ferrugem que cobrem ou desfiguram (é o que significa o verbo grego afanizó). Hoje, na época da internet e dos títulos virtuais, a vulnerabilidade toma outra forma, mas é igualmente perecível. Basta lembrar as tantas crises econômicas da sociedade capitalista e como esta já se revela estruturalmente incapaz de solucionar os problemas do mundo. Jesus nos propõe acumular tesouros no reinado divino. Ninguém pode servir a dois senhores. Não se pode servir a Deus e a “Mamom”, expressão que significa o dinheiro ou qualquer outro bem, ao qual a pessoa se apega e da qual passa a depender. Seis vezes o texto emprega a palavra “preocupar-se”( merimnan). Jesus mostra aos discípulos que é fundamental libertar-se de todas as angústias profundas. Jesus chega ao ponto de propor o desapego de necessidades fundamentais da vida como o beber, o comer e o vestir. O Pai sabe tudo aquilo do qual temos necessidade e o mais importante é esperar o seu reino. Esse apelo ao desapego nada tem a ver com um descompromisso social.
Quando Jesus propõe que os discípulos e discípulas escolham entre Deus ou a riqueza, entre a justiça do reino e as preocupações individuais, o que ele está revelando é que para ser “pobre de coração” que ele proclamou como “feliz”, é necessário o espírito de desapego e partilha. Neste mundo marcado pela desigualdade social e pela injustiça estrutural da sociedade, a única possibilidade de “procurar o reino de Deus e sua justiça” é libertar-se das preocupações consumistas que a sociedade nos inculca pela propaganda e pela ideologia individualista na qual somos formados. Cada vez fica mais claro que a sociedade do luxo e do primeiro mundo não pode ser “importada”, nem democratizada. Os atuais bens do consumo nunca poderiam ser acessíveis a todos os pobres do mundo. O que pode ser democratizado e será a salvação de todos, pobres e ricos é uma economia e uma cultura de austeridade. É isso que Jesus propõe.
Jesus nos manda aprender com os lírios do campo e os pássaros do céu. Não nos diz para ser como eles, mas para aprender a lição deles.
Esse é um dos textos mais atuais do Evangelho no sentido de dirigir nosso olhar para a natureza e todos os seres do universo, representados nas flores e nos pássaros. Olhar e aprender a lição da natureza é perceber que somos parte deste universo e temos de saber conversar e escutar este universo vivo e amoroso que nos cerca e do qual somos parte. A justiça do reinado divino supõe que recuperemos nossa comunhão com a natureza. Não é só na história que recebemos uma palavra profética de Deus. Também a natureza nos fala. “Olhem os pássaros, olhem as flores do campo”. Não é fácil desenvolver esta espiritualidade ecológica quando se vive em uma cultura urbana e na qual a vida já não depende destes elementos naturais. Seja como for, é importante reencontrarmos o diálogo e a inserção nossa como seres da natureza nesta comunidade da vida, composta de todos os seres vivos e que são sacramentos e instrumentos do amor fecundo de Deus.