Neste dia, encerrei o retiro com o grupo de padres anglicanos de São Paulo e comecei o retiro (vai até amanhã) com leigos/as da mesma diocese. Um grupo de 35 pessoas. Estamos meditando sobre o que seria uma espiritualidade laica e para leigos na Igreja e no mundo, hoje. Sempre aprendo muito com esses grupos, tanto pelo testemunho de fé (às vezes, me surpreendo ao ver a maturidade das pessoas das comunidades eclesiais, mesmo em meio a certas imaturidades do clero e dos pastores. O povo permanece fiel e resiste na fé. Acho isso uma graça divina muito grande.
Hoje, reparto com vocês a reflexão quem no livro "Boas notícias para todo mundo", (Conversa com o evangelho de Lucas), faço sobre o texto do evangelho lido nesses domingos na Igreja
– Jesus e a pecadora pública (Lc 7, 36 – 50)
Conforme Lucas, a relação de Jesus com os fariseus era boa e tranquila. Ele aceitava até convites para comer na casa dos fariseus, o que é sinal de certa intimidade. A tradição anterior a Lucas (Mc 14, 3- 9 e Mt 26, 6- 13). conhecia uma cena parecida com essa: a unção em Betânia na casa de Simão, que estes relatos chamavam de “o leproso”. O relato era ligado à paixão de Jesus como uma profecia (“essa mulher prepara o meu corpo para a sepultura”). A tradição posterior (principalmente Santo Agostinho e São Gregório Magno) identifica essa mulher “pecadora” com a “mulher adúltera” de João 8, como se todo pecado fosse sexual e fosse adultério. Identificou ainda com a figura de Maria Madalena, que, por sua vez, muitos confundem ainda com Maria de Betânia, irmã de Lázaro (Jo 12). Quanto preconceito machista e moralista se esconde por trás dessas confusões. Por que fazer de personagens como Maria Madalena, a apóstola dos apóstolos e como a contemplativa Maria de Betânia, imagens de mulheres depravadas que Jesus “teria convertido”? Por trás disso, tem uma concepção terrível do corpo da mulher e uma concepção de sexualidade diferente da atual. Entretanto, a comunidade de Lucas dialoga com outras culturas. Talvez por isso, tira essa história do contexto da paixão de Jesus e o coloca agora neste contexto que mostra Jesus abrindo fronteiras para o anúncio do Reino. Ao colocar este relato nesse lugar da narrativa do conjunto do evangelho, Lucas o torna um “resumo” dos diversos contatos de Jesus com pecadores e pessoas antes consideradas excluídas da salvação. A mulher é uma dessas categorias e, no conjunto do evangelho, ela tem muita importância. Este relato se liga ao anterior, sobre o fato de Jesus comer com pecadores e gente de má vida. Agora, o Evangelho mostra isso concentrado em uma pessoa duplamente marginalizada: ela é, ao mesmo tempo, mulher e pecadora pública.
Jesus aceitar “comer” com o fariseu significa que estabelece uma relação de aliança com o tal homem. Conforme o texto, o fariseu tem convidados, companheiros do seu grupo. Jesus, não. Está sozinho. E aí, há uma surpresa: uma mulher pecadora pública entra naquele ambiente. Duas vezes, o texto diz: “Eis uma mulher e pecadora” (v. 37). Há uma nota de surpresa, embora sem qualquer comentário. Já vimos que, na sociedade de Jesus, a mulher vivia marginalizada. Não podia participar da sinagoga, nem ser testemunha em um julgamento. A mulher não era plenamente cidadã. É claro que, na sociedade de hoje, pode não se compreender bem o que o texto quer dizer ao chamá-la de “pecadora”. Poderia ser uma adúltera, como é o caso de João 8, ou poderia ser uma prostituta, sim. Mas, essa tal mulher de que fala o texto do evangelho pode também ser uma parteira que lida diariamente com sangue humano; ou ser simplesmente uma mulher casada com um estrangeiro de outra religião, ou ainda uma mulher doente com algum tipo de hemorragia. Todas essas podem ser chamadas pelo texto de “pecadoras”. A noção de pecado era uma noção mais legal e ritual do que moral. No mundo de Jesus, a realidade da mulher era essa. Em alguns círculos, havia um começo de resistência e nessa cena transparece uma realidade de inconformismo e de subversão das normas e costumes vigentes. A mulher, “ao saber que Jesus estava lá”, entra naquela casa e toma a iniciativa de alguns gestos que o Evangelho descreve em três verbos: “regar/ enxugar, beijar e ungir”.
Naquela época, o fato de uma mulher soltar os cabelos em público já era um gesto de independência. Para a cultura antiga, o gesto de tocar nos pés de Jesus é pouco comum e muito corajoso. E o texto deixa claro que Jesus não se retrai nem se afasta, nem rejeita. Acolhe a moça. Interpreta o seu gesto como um sinal de carinho e amor. Jesus interpreta o seu gesto como uma prova da gratidão que ela sente por ter sido perdoada. “Ela muito amou porque muito lhe foi perdoado”. Mas, é importante notar que ela manifesta essa gratidão com seu corpo, não como objeto de “pecado” e sim como instrumento de comunhão e salvação. O próprio corpo feminino se torna meio de graça e salvação e não como alguns comentadores acentuariam “instrumento de pecado”.
O texto se concentra mais sobre a relação de Jesus com o fariseu e não sobre a relação com a mulher. O fariseu se revela escandalizado não pelo fato de que a mulher tenha entrado em sua casa, mas em ver que Jesus se deixa tocar por aquela mulher. Quem toca uma pessoa impura fica também impuro. O fariseu e seus companheiros fazem a Jesus duas censuras: primeiramente, põem em dúvida que Jesus seja profeta. Depois, se perguntam como ele pode até “perdoar pecados”? (7, 49). É uma crítica secreta que ninguém expressa. Jesus toma a iniciativa de conversar sobre o assunto através de uma parábola. Essa tem elementos em comum com a história que, antigamente, o profeta Natã tinha contado ao rei Davi (Cf. 2 Sm 12, 1- 10). “Era uma vez dois homens...” No primeiro tessamento, era Davi que deveria julgar. Agora, o próprio Simão deve decidir e julgar... Ambos, tanto Davi, como o fariseu Simão se condenam por suas próprias palavras. A parábola dos dois devedores perdoados mostra como Jesus interpreta o fato: Jesus não diz que a mulher não é pecadora, ou que o que ela vive não é pecado. Nem diz que os justos não são realmente justos. Mas, frisa por que ele veio para os pecadores: “ela manifesta mais amor porque mais lhe foi perdoado”.
– Quem segue Jesus (Lc 8, 1- 3)
A narrativa de Lucas é teológica. O “depois disso” não é necessariamente no tempo. É mais conseqüência. O modo de dizer que Jesus abriu o reinado divino para todo tipo de gente foi contar que ele “atravessa” cidades e aldeias, assim como, no início da Bíblia, o patriarca Abraão, tendo escutado a promessa de Deus, atravessa a terra prometida (Cf. Gn 13, 17). Antes, vocês tinham dito que “ele andava anunciando...” (4, 43- 44).
Um sociólogo especializado na idade antiga escreveu:
“No mundo de Jesus e no Evangelho de Lucas, a aldeia aparece como uma unidade homogênea. A aldeia não é apenas uma povoação pequena que ainda não é cidade. A cidade representa a população heterogênea e em geral é apresentada no plural. A aldeia tem uma população quase como clã: um povo como “uma grande multidão” (ochlos) coesa e com auto-suficiência em atender a todas as necessidades. Na maioria das vezes, os líderes das aldeias estão ligados à sinagoga. Por conta dessa homogeneidade, a aldeia deixava muita gente excluída do seu círculo. As pessoas que vinham de outras aldeias eram consideradas “forasteiros”. As relações entre as aldeias eram de conflito e competição. Vimos que os habitantes de Cafarnaum queriam reter Jesus em sua aldeia e Jesus não aceitou a restrição: “Devo anunciar a Boa Nova também a outras cidades” (Cf. Lc 4, 43). Os pobres, doentes, pecadores são considerados pessoas “de fora”. É muito mais duro ser excluído em uma comunidade pequena do que em uma sociedade maior e mais heterogênea. Na sua narrativa, Lucas demonstra interesse especial pelos que estão em posição periférica com relação à comunidade da aldeia”[1].
Parece que Jesus escolhe seus seguidores mais próximos no meio de pessoas inseridas na aldeia e que mantinham contato com suas famílias quando estavam nas próprias aldeias. Entretanto, Jesus os chama a uma vida de itinerância que, pouco a pouco, cria dificuldades com as aldeias. Ele tem seguidores e também algumas mulheres que o “seguem”. No evangelho, o verbo seguir só é usado para os discípulos mais próximos e mais imediatos: os doze. “Seguir” significa a condição do discípulo ou discípula que acompanha o Mestre vinte e quatro horas por dia e incondicionalmente. “Seguir” denota ir até a cruz. Jesus chamou seguidores para ser testemunhas de sua morte e ressurreição.
Em um tipo de sociedade, na qual as mulheres não eram consideradas dignas ou aptas a ser testemunhas em qualquer processo, Jesus escolheu mulheres para serem suas testemunhas privilegiadas. É difícil imaginar como naquele tipo de sociedade, uma mulher “normal” teria a liberdade de “seguir” e “servir” a um rabino itinerante como Jesus e a seu grupo masculino. Mateus já tinha dito que as mulheres que acompanharam a paixão, haviam seguido Jesus desde os tempos da Galiléia, servindo-o” (Mt 27, 55). Tinham de ser mulheres “especiais”.
Lucas diz que eram várias e cita algumas: Maria Madalena a quem o Senhor tinha libertado de “sete demônios”. Libertada, era mais livre do que outras. Maria era uma pessoa de aldeia. Chama-se “Madalena” como podem me chamar de “pernambucano”. Ela é de Magdala, uma aldeia da beira do lago da Galiléia. Elizabeth e Jürgen Moltmann dizem que “ela sofria de uma grave doença mental, provavelmente epilepsia e começou a seguir Jesus porque ele a curou”[2].
Conforme a tradição, Maria Madalena ocupou uma função de liderança feminina nas primeiras comunidades cristãs. Sempre que os evangelistas trazem nome de mulheres discípulas, o nome dela vem em primeiro lugar. E nos Evangelhos apócrifos, aparecem cenas, nas quais Pedro disputa com ela a coordenação do grupo. O nome das outras mulheres vem junto de uma alusão a certo poder social: Joana, mulher do procurador ou intendente de Herodes na Galiléia e Susana que, com outras, garantiam o sustento do grupo. Então, eram mulheres com mais poder aquisitivo do que os homens que seguiam Jesus. Este dado parece histórico. Vem mesmo da vida de Jesus. Isso fica claro porque é justamente este evangelho que mais realça a pobreza como valor evangélico, o que fala da posição social elevada que elas têm. Então, só podemos ficar contentes com o fato de que mesmo essa escolha radical da pobreza como comunhão com os mais pequeninos não exclui ninguém, nem mesmo as pessoas de classe média ou mais ricas que se integram na caminhada do grupo, como seria o caso dessas duas, Joana e Suzana. Alonso Shokel na Bíblia do Peregrino comenta: “Ao grupo de seguidores, junta-se um grupo de mulheres, contra os costumes dos rabinos”[3].
[1] - HALVOR MOXNES, A Economia do Reino, São Paulo, Paulus, 1995, p. 56- 57.
[2] - ELIZABETH E JURGEN MOLTMANN, Dieu, Homme et Femme, Paris, Ed. du Cerf, 1984, p. 21.
[3] - Cf. LUIS ALONSO SHOKEL, Bíblia do Peregino, São Paulo, Paulus, 2002, p. 2479.
[1] - ANTHONY G. REDDIE, Uma releitura de Lucas 8, 40- 48 sob a ótica da teologia negra, no artigo HIV/AIDS e comunidades negras na Grã-Bretanha – Reflexões de um teólogo prático afro-britânico da libertação, in Concilium 321 – 2007/3, p. 337- 340.
[2] - ANTHONY G. REDDIE, Uma releitura de Lucas 8, 40- 48 sob a ótica da teologia negra, no artigo HIV/AIDS e comunidades negras na Grã-Bretanha – Reflexões de um teólogo prático afro-britânico da libertação, in Concilium 321 – 2007/3, p. 337- 340.