Neste domingo, a Igreja Católica transforma o último domingo do tempo comum na festa de Cristo Rei. Padre João Pubben, meu amigo, me fez reler duas das circulares de Dom Hélder Câmara no tempo do Concílio. Na circular que escreveu no 27 de outubro de 1963 (naquele tempo essa festa era no último domingo de outubro), o Dom escreveu: "Celebrarei a missa de Cristo Rei. Claro que ele é rei, mas de uma realeza tão diferente que eu me angustio ao ver que, de certo modo, exploramos a realeza dele para justificar, inconscientemente a nossa...." (...) Dependesse de mim, criaríamos uma festa nova: de Cristo, servidor e pobre" (25a circular - Circulares Conciliares, vol I, tomo I, p. 238).
Na vigília de 24/25 de outubro de 1964, ele retoma o mesmo assunto, diz que essa festa o aflige e comenta em uma oração ao Cristo: "Como explicar teu título aos 2/3 que estão no subdesenvolvimento e na fome? (...) Tanto que disseste que teu reino não é desse mundo. De novo, nossa fraqueza transformou em império a tua Igreja e nem sabemos como nos desfazer dos novos e mais difíceis estados pontifícios e episcopais e congregacionais... Parece à nossa cegueira, a nosso pouco espírito evangélico que nem é viável viver de outra maneira... (Quando tiraremos consequências práticas de tua identificação com o pobre e quando aprenderemos a lição forte do julgamento final?" (53a Circular, 24 a 25/ 10/ 1964, Circulares Conciliares, vol 1, tomo II, p. 205).
Hoje, como naquele tempo, pouquíssimos bispos e ministros se identificam com essas palavras e esse sentimento do Dom. Eu assumo totalmente esse modo de pensar e de sentir. Sei que essa festa foi criada pelo papa Pio XI justamente para salientar a realeza do papa e da Igreja institucional, em nome de Cristo Rei. E novamente hoje, se repete certo cinismo de palavras que dizem: é como servidor que ele é rei, é na cruz que ele é rei.... Mas, vários cânticos e expressões o colocam como rei pomposo de glória e esplendor. Quando eu era menino, gostava de ouvir cantar: "Cristus vincit, Cristus regnat, Cristus imperat..." . Hoje, tenho vergonha disso. Uma vez, no Rio de Janeiro, fui a um teatro de vanguarda, no Museu de arte moderna. Era um grupo de Juazeiro do Norte e encenava a costrução da Matriz de Nossa Senhora das Dores. Mas, que dor foi ver aquela procissão de beatos e romeiros, todos maltrapilhos e doentes que cantavam: "O Senhor é meu pastor, nada me falta" (Slamo 23) e depois: "O Senhor fez em mim maravilhas. Santo é o seu nome". Aquela procissão era como um murro na cara de quem crê. Ela nos interpelava: Será que Deus é verdadeiro, cumpre sua promessa ou é velhaco e não cumpre o que promete? No evangelho lido nesse domingo, Jesus, preso e condenado à morte, responde a Pilatos: "Para isso, nasci e para isso vim ao mundo: Para dar testemunho da verdade" (quer dizer para mostrar que Deus não é caloteiro. Que o seu reino é verdade). "E toda pessoa que é da verdade escuta a minha voz" (Jo 18, 33 ss).
O reino de Deus (embora esse termo hoje pegue mal e seria muito melhor falar em projeto de Deus para o mundo) sim. Cristo rei não. Jesus nasceu e viveu para que toda pessoa humana, por mais pobre e oprimida que seja, readquira a dignidade de filho e filha de Deus. E seja testemunha viva desse projeto divino para o mundo que nós queremos viver e testemunhar - não construir porque é Deus que pode construir em nós e através de nós.