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​Meditação bíblica, sábado, 29 de dezembro 2012

Nesta noite de sábado, medito o trecho do evangelho que as comunidades lêem nas missas dessa noite e neste domingo (amanhã). Reparto com vocês um pouco do que escrevi sobre essa perícope de Lucas no livro que está saindo daqui há pouco em português (já saiu em italiano): Boa notícia para todo mundo. Conversa com o evangelho de Lucas. 

Uma peregrinação ao Templo (Lc 2, 41 – 52)

Os Evangelhos não contam nada a respeito dos trinta primeiros anos da vida de Jesus. Hoje, muita gente tenta preencher essa lacuna investigando as possibilidades de que Jesus tenha vivido na Índia, aprendendo a sabedoria hindu, ou tenha se iniciado entre os essênios, ou entre o grupo dos terapeutas e assim por diante. Os relatos evangélicos não se preocupam em contar nada. Lucas é o único que, sobre esses anos de vida oculta, abre uma pequena janela e conta esse único episódio da peregrinação ao templo quando Jesus tinha doze anos. Assim, encerra o chamado “Evangelho da Infância” com uma cena que resume um modo de viver, ou um sentido que Jesus dá à sua vida. Diz que os pais iam todos os anos a Jerusalém para a fessa da Páscoa e o menino ia com eles. A cena é contada de forma simbólica. Conforme a tradição judaica, é aos 13 anos que a criança começa a participar da vida da comunidade. É quando o menino pode fazer o seu Bar-Mizvah, rito de inserção na sinagoga e na comunidade. A partir de então, a criança começa a se emancipar dos pais. Jesus se antecipa e com 12 dá um sinal de emancipação dos seus pais. Com essa idade, Jesus volta ao templo e revela que pertence ao Pai de amor (os pais humanos não podem mais resgatá-lo). Como todos os judeus, os pais de Jesus vão ao templo para oferecer sacrifícios. Jesus, não. Ele vai ao templo para “se ocupar das coisas que são do meu Pai”. A cena de Jesus, ouvindo e interrogando os “mestres” da Torá é reveladora, primeiramente de que ele se liga à tradição de Israel, se interessa por ela e quer aprender. Em nenhum momento o texto diz que ele ensinava aos doutores da lei. Diz que ele perguntava e ouvia. E sublinha que os mestres e professores da Bíblia ficaram espantados com a inteligência das suas perguntas.

Este texto contém uma história de atmosfera dolorida e profundamente humana (os verbos gregos utilizados são “ekplesso= maravilhar-se e oudunao = estar ansioso). Conforme a comunidade de Lucas, mais uma vez, o templo é apresentado como a casa do Pai e tem muita importância na experiência de Jesus. É no templo que ele, ao se ausentar dos pais humanos, descobre e revela um outro Pai. Essa relação íntima de Jesus com Deus ainda é um mistério e mesmo as pessoas mais próximas de Jesus, Maria e José têm dificuldade de compreender o sentido do que está acontecendo.

Quantas vezes isso acontece conosco. A gente tem mais dificuldade de perceber o maravilhoso no cotidiano, quando ele ocorre em nosso cotidiano. O texto sublinha que os pais o procuram sem encontrá-lo e o encontram após três dias. Maria e José o encontram, mas não o compreendem e o repreendem com amargor. A gente sabe que, no tempo das primeiras comunidades cristãs, houve tensões e dificuldades de compreensão entre discípulos e aqueles que se chamavam “parentes” ou “irmãos” do Senhor. Essa referência a Maria e José se incluiria, talvez, nesse registro. É como se dissesse que quem procura Jesus, como se fosse com direito de parente, não o encontra profundamente. Na segunda carta aos coríntios, Paulo escreve: “Mesmo que tivéssemos conhecido Jesus conforme a carne, (ou segundo as aparências), agora já não o conhecemos assim. Se alguém é de Cristo, tem de ser uma nova criatura” (2 Cor 5, 16). Isso quer dizer que, para se encontrar Jesus, a pessoa tem de procurar de um modo novo e que não pode ser “do jeito da carne, isto é, de forma egoísta ou por interesses que não são os de Deus. É a primeira vez que o evangelho fala em uma atitude independente e consciente de Jesus. Como se, com um só gesto simbólico, o adolescente Jesus cortasse o absoluto dos vínculos familiares. Ele não corta os laços afetivos. Tanto que o evangelho termina dizendo que ele voltou com eles a Nazaré e lhes era submisso. Mas, no templo, aqui chamado de “casa do meu Pai”, ele antecipa as futuras discussões com os doutores da lei. Mas, agora, ele interroga e põe questões.

A comunidade de Lucas diz que tudo isso aconteceu na ocasião de uma fessa de Páscoa – Seria um modo de aludir à Páscoa que Jesus, adulto, iria viver em Jerusalém, na qual também os discípulos só poderão reencontrá-lo “no terceiro dia”. Essa história do menino Jesus no templo é uma profecia da páscoa definitiva do Cristo e de sua ressurreição no terceiro dia, quando enfim, os discípulos poderão reencontrá-lo.

Em um artigo clássico, o padre Jacques Dupont mostra que essa passagem está profundamente ligada ao relato da Paixão e Ressurreição do Senhor. Em Lucas, a expressão “dei” (é preciso) encontra-se aqui e mais quatro vezes. Todas ligadas ao contexto da Paixão: “é preciso que o Filho do Homem sofra muito...” (9, 44; 24, 25, etc). A palavra que Lucas diz de Maria e José “Eles não compreenderam” também é usada várias vezes, sempre no contexto do anúncio da Paixão (18, 34)[1].

Como uma criança normal, Jesus “crescia em sabedoria, idade e graça”. Desenvolvia-se física, psíquica e espiritualmente. Para alguns cristãos, foi difícil compreender que Jesus crescia em graça. A carta aos hebreus diz que “ele aprendeu a obedecer ao Pai” (Hb 5, 8). Ele viveu sua humanidade assim, plena e absolutamente.

Eu quero chamar a atenção para outro aspecto desse episódio: é o fato de que no texto, há muitas alusões à missão pascal de Jesus e sua cruz. A primeira palavra de Jesus nesse evangelho é aquela com a qual ele responde a seus pais que o repreendem. “Devo ocupar-me das coisas que são do meu Pai” liga-se à sua última palavra na cruz: “Pai, em tuas mãos, entrego o meu  espírito” (23, 46). O Evangelho da Infância é uma espécie de síntese simbólica de toda a pessoa, vida e missão de Jesus. 

[1] J. DUPONT, Jésus aux douze ans,  in ASSEMBLÉES DU SEIGNEUR,  1a série, n. 14 (Fête de la Sainte Famille) , Brugges, Publications de St André, 1961, p. 25- 43.

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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