Reflexão sobre o evangelho
(Mateus 16, 13- 27)
Nesse domingo, as comunidades de tradição católica no Brasil celebram a festa de São Pedro e São Paulo, transferida da sexta feira, 29. O trecho do evangelho lido é o que se chama "a confissão de fé de Pedro". A cena se passa em um território estrangeiro (do outro lado do Mar da Galiléia). Jesus está lá clandestino, em um momento de forte crise pessoal. Os exegetas chamam isso de "crise galilaica". Poderíamos dizer que foi uma crise de vocação, ou seja, ele começa a perceber que sua missão junto ao povo (o anúncio do projeto divino para o mundo) estava falhando. Faz então com os discípulos uma revisão a respeito do que o povo pensa da sua pessoa e da sua missão. Pedro responde em nome de todos: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”(v. 16). Quando Pedro confessou: “Tu és o Filho de Deus”, não pensava em dizer que Jesus é a segunda pessoa da Santíssima Trindade, de natureza igual ao Pai [1]. “Dizer que ele é o Messias (Cristo), e como tal, é “filho de Deus, salienta a relação singular que o Messias tem com a divindade”[2].
Só o evangelho de Mateus traz a palavra de Jesus a Pedro: “Tu és Pedro”. Mateus ressalta mais do que outras tradições evangélicas a importância de Pedro no meio dos outros discípulos. Só Mateus conta que Jesus respondeu à profissão de fé de Pedro, lhe fazendo uma espécie de promessa: “Tu és Simão (em hebraico, o nome "Simão" significa: “Aquele que escuta” ou que obedece), filho de Jonas (da pomba Israel?). De agora em diante, te chamarás Cefas que quer dizer pedra.
Conforme alguns exegetas, na época de Jesus, o povo tinha o costume de escavar as rochas para daí tirar pedras para construir casas. Os buracos formados nas rochas recebiam na língua aramaica o nome de kepha.As pessoas pobres e sem casa se abrigavam nestas cavernas e as usavam como sendo suas casas. Assim sendo, o nome Kepha pode ser traduzido por pedra ou por gruta escavada na rocha, isto é, gruta que servia de abrigo para os pobres sem-teto. Se fosse neste segundo sentido a palavra atribuída a Jesus, a tradução mais literal seria: “Tu és Pedro e sobre ti como gruta que serve de abrigo aos mais empobrecidos quero construir a minha comunidade (Igreja)”[3].
As comunidades cristãs primitivas acentuavam que a pedra da Igreja é o Cristo (Cf. 1 Cor 10, 11 e 1 Pd 2, 6). Vários salmos e orações da Bíblia dizem que o Senhor é o rochedo da nossa salvação (Cf. Sl 18, 3 e 32; 31, 4; 61, 4; 95, 3; 144, 1). Jesus tinha dito que toda pessoa que escuta e pratica a Palavra (Simão quer dizer o ouvinte e obediente) é como quem constrói a sua casa sobre a rocha (Mt 7, 24). “No edifício da igreja, ninguém pode colocar outro fundamento que o Cristo Jesus, pedra angular” (1 Cor 3, 11).
“Mateus é o único evangelista que usa a palavra ‘Igreja’. No seu contexto, Igreja significa a comunidade local. Pedro é o apoio, a pedra que deve dar segurança ao edifício no sentido da fé. Pedro é a figura-símbolo do discípulo a quem o Senhor confia o encargo de “confirmar na fé aos seus irmãos”. Embora Jesus entrega a todos a missão de testemunhar o reino, conforme Mateus, Jesus entrega a Pedro as chaves do Reino. É um modo de falar próprio da linguagem apocalíptica e se baseia em Isaías 22.
Na concepção atual dar a chave seria dar o poder. No Brasil, é até usual que o prefeito de um município entregue uma autoridade que o visita, a “chave” da cidade. Na cultura rabínica, dar a chave nada tem a ver com poder. A chave significava a capacidade de interpretar a Torá, a Bíblia. O que significa, então, Jesus entregar a Pedro as chaves do Reino dos céus? É o modo dele dizer que Pedro é o verdadeiro escriba que tem o direito e o discernimento de interpretar tudo o que nas Escrituras diz respeito ao projeto de Deus no mundo (o reino dos céus).
A Igreja Católica construiu toda uma teologia sobre o ministério de Pedro e de seus sucessores que uma tradição muito antiga coloca como sendo o bispo de Roma. Hoje, a maioria das igrejas históricas parecem dispostas a aceitar a necessidade de um ministério de coordenação e de unidade que pode ser realizado pelo papa. Sem dúvida, é direito de uma Igreja apoiar-se em uma tradição. Mas, com os estudos exegéticos avançados que existem, é difícil sustentar como histórico que Jesus tivesse querido fazer de Pedro o chefe da Igreja Universal que não existia como conjunto de comunidades, nem na época de Jesus, nem ainda no tempo em que os Evangelhos foram redigidos. Menos ainda que Jesus tivesse imaginado um sucessor de Pedro com esse “poder”.
Em um de seus livros, o padre Comblin comenta: “Do texto de Mateus não se pode concluir que Pedro teria tido um sucessor. (…) Quando o Evangelho foi escrito, Pedro tinha morrido provavelmente um quarto de século antes e o Evangelho não fala ainda em qualquer sucessão” [4]. Vamos então escutar esse evangelho e interpretá-lo não como justificativa ou legitimação ideológica do poder eclesiástico do papa que não tem nenhuma base séria nos evangelhos. Vamos interpretá-lo como um convite a que cada um/uma de nós percorra o caminho de Pedro em acolher a graça divina e reconhecer Jesus como enviado do Pai. E que cada um de nós seja essa Kefas, ou seja, gruta escavada na rocha, na qual os pobres e sem teto do mundo (em todos os sentidos, literal ou psicológico) possam abrigar-se e ter casa, acolhida e vez. E assim, o evangelho de Jesus se torna de novo atual.
Um bom domingo para vocês.
[1] - Cf. LEONARD SWIDLER, Ieshua, Jesus histórico, Cristologia – Ecumenismo, São Paulo, Ed. Paulinas, 1993, p. 30 em diante.
[2] - O. SPINETOLI, idem, p. 459.
[3] ´FREI JACIR FREITAS FARIA, in Roteiros Homiléticos, in Vida Pastoral, julho-agosto 2011, p. 36.
[4] - JOSÉ COMBLIN, As linhas básicas do Evangelho segundo Mateus, in Estudos Bíblicos 26, p. 15.